O Globo, n. 31571, 14/01/2020. Sociedade, p. 21

Retrato do Brasil visto por Cabral

Rafael Garcia


Os índios tupiniquins do Espírito Santo são sobreviventes do genocídio que eliminou os tupis da costa brasileira. A sabedoria que aquela comunidade mantém sobre sua própria origem foi confirmada agora por um estudo de DNA, indicando que os cerca de 500 integrantes da etnia que vivem no estado estão entre os últimos representantes do grupo indígena que encontrou Pedro Álvares Cabral.

— Os tupiniquins são a fotografia de 1500 — diz a geneticista Tábita Hünemeier, da USP, líder do grupo responsável pela descoberta.

Analisando dados de DNA colhidos de 47 tupiniquins de Aracruz (ES) e comparando-os com os de 55 indígenas de outras regiões do Brasil, a cientista conseguiu reconstruir a História de ocupação tupi no litoral. O grupo dominava a costa de Santa Catarina até o Pará.

O trabalho foi possível porque, em 2004, cientistas do Espírito Santo colheram amostras de sangue da população para um estudo de genética médica. Vários anos depois de participarem de pesquisa para investigar a hereditariedade de problemas cardiovasculares, os indígenas consentiram que os dados de seu DNA pudessem ser usados para estudo de ancestralidade.

Para colocar os dados genéticos de ancestralidade em contexto, porém, cientistas compararam o genoma dos tupiniquins com o DNA de outros índios do Brasil, coletados pelo biólogo Francisco Salzano na década de 1960. Professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Salzano morreu em 2018, quando a pesquisa ainda estava em andamento, e coassina postumamente o artigo científico que Tábita e outros colaboradores publicaram ontem na revista científica PNAS.

O trabalho dos cientistas pode ter grande impacto histórico e arqueológico, porque confirma que os tupiniquins de hoje pertencem ao grupo indígena que surgiu há mais de 5 mil anos na região do Rio Madeira eque ,2 milanos atrás, começou a migrar para acosta atlântica da América do Sul, motivada pelo crescimento populacional. À época, os tupis já eram um povo relativamente avançado tecnologicamente, com agricultores que dominavam técnicas de cerâmica.

Alguns historiadores e linguistas acreditavam que acosta teria sido povoada por descendentes do mesmo povo que originou os guaranis do Sul do país — estes, por sua vez, também descendentes dos tupis. Oque o estudo mostra, porém,é que isso não faz sentido em termos da distribuição genética dos índios brasileiros. Os tupis da costa, na verdade, chegaram ao Atlântico pela foz do Amazonas e depois seguiram rumo ao sul pelo litoral.

— Usamos essas duas hipóteses como modelos para tentar diferenciar o que aconteceu — conta Marcos Araújo Castro e Silva, geneticista da USP que assina o estudo como autor principal.

— No fundo não estávamos testando arqueologia nem linguística. Usamos essas hipóteses, que já existiam há muito tempo, para testar com os dados genômicos.

Símbolo nacional

Os tupiniquins que forneceram amostras de DNA para o estudo hoje já são bastante miscigenados, bem como outras populações do Brasil. O genoma da maior parte dos indivíduos, porém, ainda é de origem indígena.

— Uma coisa impressionante é que eles se miscigenaram com europeus e africanos, mas não com outros índios —conta Tábita.

— Eles são tupiniquins.

A etnia indígena que virou símbolo de algo que é genuinamente brasileiro, porém, sofreu uma pressão brutal.

Com uma população estimada em 200 mil indivíduos em 1500, os tupiniquins foram reduzidos a um grupo de 55 indivíduos no século XVIII e foram declarados oficialmente extinta em 1780.

— Se você olhar no site do IBGE, lá está dizendo que os tupiniquins foram extintos. Eles existem, oficialmente, porque se autodeclararam tupiniquins em 1975, e a Funai reconheceu esse grupo miscigenado que reapareceu à época —conta a pesquisadora.

— Entre 1780 e 1975, porém, eles simplesmente não existiam oficialmente.

Antes de publicar os resultados de sua pesquisa na PNAS, Tábita e outros autores do artigo viajaram até Aracruz para apresentar a descoberta aos tupiniquins da região. A ideia era mostrar aos índios parte da História do povo que havia sido resgatada pelo DNA. Uma forma de retribuir a contribuição dada em amostras de sangue para a ciência.