O Globo, n. 31590, 02/02/2020. Economia, p. 28

‘Os próximos dez dias na china serão cruciais’
Entrevista: Fabiana D'Atri


Pelo que se sabe até agora, o impacto do coronavírus na economia chinesa tende a ser semelhante ao vivido pelo Brasil na greve de caminhoneiros de 2018: pontual e temporário. A avaliação é de Fabiana D’Atri, economista do Departamento de Pesquisas e Estudos Econômicos do Bradesco e integrante do Conselho Empresarial Brasil-China, sobre o rápido avanço da epidemia que paralisou o país asiático e abalou mercados no mundo. Estudiosa da segunda maior economia do planeta, Fabiana admite que a suspensão de atividades econômicas na China por duas semanas pode reduzir o PIB do país em 1,5 ponto percentual, mas acredita que isso será concentrado no primeiro semestre, com possibilidade de recuperação na segunda metade do ano. Se o cenário se confirmar, o efeito sobre o Brasil, que tem na China seu maior parceiro comercial, também tende a ser limitado. Mas a alta volatilidade dos preços das commodities e do dólar deve perdurar por um bom tempo, alerta a economista.

Neste momento, qual a dimensão possível do impacto econômico desta epidemia do coronavírus na economia?

O que a gente consegue ver, por ora, é o impacto na China. Estamos trabalhando com algo como uma perda de 1,5 ponto percentual do PIB, principalmente neste primeiro trimestre, mas também um pouco no segundo. Considerando que grande parte desta perda pode se recuperar no segundo semestre, isso levaria o PIB do ano na China a crescer 5,6%, em vez da nossa previsão anterior de 5,8%. Sabemos que o mercado tinha projeções diferentes, algumas mais pessimistas, masa maioria está indo nesta direção, inclusive tendo (a epidemia do) Sars (em 2003) como referência.

E a economia global?

Se a China paralisou por 15 dias, uma semana do feriado (do Ano Novo chinês) mais uma estendida, que é a informação que temos agora, vai demandar menos do mundo neste período. Mas isso não significa que demandará menos lá na frente. A cada queda de 1,5 ponto percentual no PIB da China você tem uma retração de 0,3 ponto no do mundo. O peso do país é de 20% na economia global, mas temos que calibrar estes impactos. Uma coisa são os serviços internos, como ninguém ter ido ao restaurante neste período. Quando a vida retoma, não se compensa isso indo duas vezes seguidas ao restaurante. É algo semelhante a o que tivemos com a greve dos caminhoneiros no Brasil, em 2018. Mas quando falamos de produtos comercializáveis e não de serviços, é possível recuperar depois. Parece muito cedo para imaginar que a China não retomará sua atividade de construção e de indústria este ano a ponto de não demandar matérias-primas. Isso não deve ocorrer. A epidemia pode retirar algo do crescimento mundial do ano, mas algo mais concentrado no primeiro trimestre. É justamente no momento em que havia expectativa de retomada do crescimento (global) por causa do acordo comercial China-EUA. Agora isso pode ser frustrado ou postergado.

E a cadeia mundial de produção baseada em insumos e produtos chineses?

Você pode ter um período de descasamento, mas há estoques no mundo. O Brasil tem estoque da maior parte dos produtos que vêm da China, então isso é administrável. E, neste momento de isolamento, a China não está vendendo internamente. Parte da produção para o mercado doméstico pode ser direcionada para o global. Empresas de comércio internacional não estão vendo motivo de preocupação sobre disrupção de cadeias de fornecimento. Os impactos da China demandando e ofertando não devem ser significativos.

Há um inferno astral chinês? Houve a tensão com os EUA, a crise com Hong Kong, a febre suína e agora o coronavírus…

Não gosto dessa abordagem. A China está com uma gestão de crise do coronavírus assertiva, pró-ativa e bastante transparente, se comparada a outros momentos. Derivações disso para questões geopolíticas são precipitadas.

Qual a chance de o cenário ser pior que o projetado até agora?

Como economista, não tenho capacidade de avaliar uma epidemia. O que vemos até agora é que a mortalidade é mais baixa que a do Sars. O que assusta um pouco é que o Sars, em seu ciclo total, chegou a pouco mais de 5 mil infectados. Agora já estamos falando de dez mil em período muito menor. Na época do Sars havia um grande crescimento mundial. Agora, a grande expectativa do primeiro trimestre era a retomada com a redução da tensão entre China e EUA. Enquanto o número de casos estiver variando de um dia para o outro em velocidade razoável, a preocupação ainda será latente. Na medida em que observarmos variações diárias (no número de casos) perdendo força, virá a sensação de que o vírus está sendo contido. Os próximos dez dias serão cruciais para recalibrar as expectativas. Se o cenário piorar, aumentam as chances de impacto nas cadeias internacionais e na demanda da China. Mas ainda não temos informações nesse sentido.

Na comparação com o caso Sars, a economia agora é muito mais integrada…

Sim. Em 2003, a China estava num momento recente de internacionalização, entre 2% e 3% do comércio global. Hoje está próxima a 12%. O número de chineses circulando no mundo é muito maior. A participação do PIB chinês na economia mundial hoje é praticamente o dobro daquele período. A preocupação é muito maior agora. Mesmo assim, na epidemia do Sars, o mercado reagiu, preços de commodities e bolsas caíram, mas se recuperaram em pouco tempo, mesmo na China.

A epidemia está concentrada em províncias com grande peso econômico. Isso agrava as consequências econômicas?

Há uma concentração na região de Wuhan. Uma coisa é o tratamento da epidemia, é preciso ver como a China vai trata risso. Outra é a paralisação do país. O feriado é nacional. É preciso ver o todo. Wuhan não tem uma participação tão relevante assim no PIB da China, cerca de 5%, mas é um ponto logístico importante na distribuição de mercadorias e pessoas. Isso dificulta a retomada e aumenta custos. Mas não se trata de uma região exportadora. Só 1% das exportações chinesas vêm de lá.

Qual será o impacto para exportadores brasileiros, como o agronegócio?

Se pensarmos que 15 dias de paralisação são administráveis, parece muito cedo para prever impactos no Brasil. O agronegócio brasileiro está sendo muito mais impactado pela febre suína, pois há a expectativa de que o rebanho de porcos na China não será reposto neste ano, e a demanda por proteína continua elevada. O que pode ter é uma interrupção temporária em cadeias como as de construção, o que geraria menor demanda de minério de ferro, por exemplo. Mas 15 ou 20 dias, coma retomada lá na frente, parece pouco. Por ora, parece (um efeito) neutro, sendo necessário só fazer uma gestão de estoque e olhar o fluxo de embarques. É algo pontual, como a greve dos caminhoneiros no Brasil.

Mas a China tem capacidade de reação muito maior que a do Brasil após a greve...

Sim, o país é maior. Por outro lado, pode ser que o período de choque seja mais prolongado que a nossa greve.

Como empresas e governos precisam se preparar para esta crise do coronavírus?

O primeiro ponto é observar esta desaceleração global. Se a China cresce menos no primeiro trimestre, o mundo inteiro cresce menos. De fato, vamos ver uma retomada não tão vibrante ou uma frustração dela. Mas há outros impactos, como no preço do petróleo, que influi em preços importantes, como o dos combustíveis. O importante é saber separar o que é pontual do que é permanente. Por enquanto não temos qualquer evidência de impacto permanente.

A volatilidade do mercado financeiro deve seguir em alta?

Sim. Enquanto a gente não souber o período de interrupção das atividades na China e até quando os casos da doença continuarão crescendo com vigor, haverá incerteza, e a volatilidade tende a ser mais alta.

“Parece muito cedo para imaginar que a China não retomará sua atividade de construção e de indústria este ano a ponto de não demandar matérias-primas. Isso não deve ocorrer.”