O Globo, n. 31572, 15/01/2020. Mundo, p. 25

Pacto nuclear na UTI



Os governos de França, Reino Unido e Alemanha ativaram, ontem, o mecanismo de disputas do acordo nuclear firmado entre o Irã e as principais potências globais em 2015. A medida equivale a uma denúncia do pacto e poderá levar, em médio prazo, à volta de sanções da ONU contra Teerã.

Hesitantes sobre uma reação negativa do país persa e temendo o fim do acordo atômico, o conjunto dos países europeus havia rejeitado a ativação do mecanismo de disputas em uma reunião na sexta-feira, na qual a União Europeia (UE) optou por intensificar a diplomacia para aliviar as tensões regionais. Agora, Paris, Londres e Berlim decidiram endurecer com Teerã, que, por sua vez, contestou a base legal da ação europeia e alertou para suas “consequências”, advertindo que dará uma resposta “séria e firme” a qualquer medida “destrutiva”.

O anúncio, segundo os três países, é uma resposta às “recorrentes violações” do pacto pela República Islâmica, intensificadas após o anúncio de Teerã, em 5 de janeiro, de que não “não reconhecerá limites” às suas atividades de enriquecimento de urânio, embora fosse continuar colaborando com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), da ONU.

Teerã vinha, desde o segundo semestre de 2019, adotando passos graduais de afastamento do acordo, e o último anúncio foi mais um nessa direção, e também uma retaliação ao assassinato do general Qassem Soleimani pelos EUA, em 3 de janeiro.

Queda de comércio com UE

Teerã justifica sua posição alegando que a UE não conseguiu pôr em prática de forma eficaz o mecanismo (Instex) que protegeria o comércio bilateral das sanções americanas — em 2019, aqueda foi de 75% em relação a 2018, com as exportações iranianas à Europa caindo 94%, para apenas € 586 milhões.

Segundo fontes ouvidas pelo jornal britânico The Guardian, a decisão dos três países teria sido tomada antes do Natal, não sendo diretamente vinculada à crise mais recente no Oriente Médio.

“Nós não aceitamos o argumento de que o Irã está autorizado a reduzir o cumprimento do JCPOA ( Plano de Ação Conjunto Global, em inglês). Ao invés de reverter este curso, o Irã escolheu reduzir ainda mais o cumprimento”, diz um comunicado emitido pelos três países, que usa o nome oficial do acordo. “Nós fazemos isso de boa-fé, com o objetivo maior de preservar o JCPOA e com a esperança sincera de que encontremos um caminho para resolver este impasse por meio do diálogo diplomático construtivo, enquanto preservamos o acordo e sua estrutura.”

Em resposta, o porta-voz da Chancelaria iraniana, Abbas Mousavi, disse que a decisão europeia é uma“medida passiva” eque ,“praticamente ”, não é novidade. Ele disse ainda que o Irã está de braços abertos para discutir quaisquer propostas feitas de boa-fé para renegociar o acordo nuclear, mas advertiu que Teerã dará uma resposta “dura e firme” para quaisquer ações destrutivas de outras partes do pacto.

A Rússia, também signatária do acordo nuclear, criticou a decisão dos três países, afirmando que ela tornará “impossível” salvar o pacto. Após a medida europeia, abre-se agora um prazo para se tentar chegar a uma solução, antes que a denúncia seja feita ao Conselho de Segurança da ONU. Ainda assim, Paris, Londres e Berlim anunciaram que não se unirão aos EUA em sua campanha de “pressão máxima” contra ao Irã, deixando aberto um espaço de diálogo.

O chefe da diplomacia da UE, Joseph Borrell, disse ainda que não há outra alternativa ao JCPOA e que salvá lo“ é mais importante que nunca”. Sua declaração contraria o premier britânico, Boris Johnson, que afirmou que o pacto poderia ser substituído por outro negociado pelo presidente Donald Trump, que defende um acordo mais amplo, não restrito à questão nuclear, e que envolveria também o programa de mísseis balísticos do Irã e seu apoio a grupos anti-EUA em países como Líbano e Iraque.

Pressão só sobre Irã

Segundo Trita Parsi, um dos maiores especialistas em Irã nos EUA, a ativação do mecanismo de disputa é bastante perigosa. A possível volta das sanções da ONU, segundo ele, não seria apenas o fim definitivo do pacto, mas também poderia levar o Irã a abandonar o Tratado de Não Proliferação Nuclear, do qual foi um dos primeiros signatários, ainda nos anos 1960.

Em seu Twitter, Parsi disse que este é um passo que não destoa da posição europeia nos últimos anos. Desde que Trump retirou os EUA do acordo de 2015, toda a pressão europeia foi voltada para o Irã continuar a cumprir o pacto, e não para os EUA voltarem a respeitá-lo, na avaliação de Parsi.

As sanções americanas atingiram setores cruciais, como a indústria petrolífera iraniana. Pelas previsões do Fundo Monetário Internacional, o PIB do Irã pode cair até 9,5% em 2020. Ainda assim, o país persa continuou a respeitar o acordo.