Título: Representação do exemplo e da retidão
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 20/04/2005, Internacional, p. A9

Um indivíduo era necessário, alguém forte e sábio o suficiente para disciplinar o impulso monástico, para moldá-lo ao tempo de um império decadente, ao tempo sedento por exemplos, ensinamentos e consolo espiritual, que só um movimento religioso organizado poderia prover.

São Bento foi o ''indivíduo'', na segunda metade do século 5, em meio aos últimos suspiros do Império Romano.

O santo, eternizado pelos Diálogos do papa São Gregório Magno (590-604), nasceu em Núrsia, na Itália, na região de Umbria (centro-Norte), no que se diz no ano 480 DC.

Quando adolescente, viajou a Roma para estudar Direito e a retórica, mas não se estabeleceu na capital - então um ambiente de disputas políticas e religiosas como o cisma de Acácia, o primeiro de um longo período de conflitos doutrinários entre as Igrejas Ocidental e Oriental. São Bento preferiu a companhia de uma comunidade nos arredores da cidade, ao pé do monte Affile.

Foi no local que o Santo iniciou uma vida na qual a reza, o silêncio e o estudo formariam as bases dos centros monásticos europeus da Idade Média. Segundo os escritos de Gregório, foi também em Affile que São Bento praticou o primeiro milagre, ao reconstituir com a reza um utensílio de barro destruído por sua criada.

Não se sabe se pelo temor da veneração ou se por qualquer outra razão, o Santo deixou a comunidade após o fato e partiu sozinho para Subiaco, onde se tornou o líder monástico histórico do catolicismo.

A filosofia monástica ganhou força ao mesmo tempo em que as perseguições romanas aos cristãos enfraqueciam, depois dos massacres realizados no Egito nos anos 240 e 304, quando milhares fugiram das cidades egípcias para evitar a morte.

O monastério assim se tornava uma opção ao martírio para os cristãos. Nesta época, os monges passaram a ser vistos como heróis ao se entregarem totalmente a Deus. Segundo consta, havia tantos monges no deserto quanto cidadãos no Egito, em 394.

No entanto, ainda não havia as regras fundamentais da vida monástica. Dos Pais do Deserto egípcio à Irlanda dos séculos 6 e 7, a história do cristianismo está recheada de brigas políticas e conflitos religiosos que chegariam ao ápice na conversão do Império Romano, quando, em 306, os cristãos se tornaram o Estado, por excelência, com a chegada de Constantino ao poder.

Na Itália, a fama perseguia São Bento que recebia convites para ser abade em vários monastérios. Quando resolveu aceitar um, em Vicovaro, alertou aos monges que talvez não fossem capazes de agüentar a austeridade da sua filosofia.

Dito e feito. Depois de um tempo, os monges tentaram matá-lo com um cálice de vinho envenenado. Segundo a história, São Bento escapou literalmente por um milagre, ao abençoar a bebida e torná-la assim inofensiva.

As ruínas do monastério ainda podem ser visitadas. Em vez de grandiosas, as fundações mostram pequenas cavernas de 1,80m de profundidade por 2,5m de altura, com uma janela cada uma. Salas maiores apenas para a Igreja e o refeitório.

Ao deixar Vicovaro, São Bento voltou a Subiaco, que viria a se tornar sede dos monges beneditinos. No entanto, seu maior projeto ainda estaria por vir: o monastério do monte Cassino, para o qual formulou as famosas 73 regras para a vida de um monge cristão.

O texto não é um guia para clérigos nem a fundação de uma suposta ordem global. É um conjunto de regras para a vida no monastério, para indivíduos que optaram viver o mais perto possível de Deus. Um caminho que passa pelo trabalho, pela obediência, pela virtude, pelo estudo. As regras são um documento de como o Homem deve viver perto de Deus em um mundo imperfeito.

''Escuta, filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e executa eficazmente o conselho de um bom pai, para que voltes, pelo labor da obediência, àquele de quem te afastaste pela desídia da desobediência. A ti, pois, se dirige agora a minha palavra, quem quer que sejas que, renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei''.

As regras são o único texto conhecido de São Bento, suficiente para se estabelecer como o paradigma monástico. Obra representativa do Homem que foge das tentações de um mundo impuro e sem referência por meio de uma vida simples, retida e de oração, que leva ao amor e ao encontro com Deus.

''Devemos, pois, constituir uma escola de serviço do Senhor. Nesta instituição esperamos nada estabelecer de áspero ou de pesado. Mas se aparecer alguma coisa um pouco mais rigorosa, ditada por motivo de eqüidade, para emenda dos vícios ou conservação da caridade não fujas logo, tomado de pavor, do caminho da salvação, que nunca se abre senão por estreito início. Mas, com o progresso da vida monástica e da fé, dilata-se o coração e com inenarrável doçura de amor é percorrido o caminho dos mandamentos de Deus''.