O Globo, n. 31573, 16/01/2020. Sociedade, p. 23

Incerteza a longo prazo

Elcio Braga
Rafael Garcia


A trajetória física do Brasil à Antártica é longa, mas o percurso acadêmico para se tornar um cientista antártico é ainda mais difícil, e a atual escassez de verba para ciência no Brasil lança uma incerteza de longo prazo para os pesquisadores.

As novas instalações da Estação Comandante Ferraz, reinaugurada ontem após investimentos de US$ 99,6 milhões (R$ 407 milhões, no câmbio atual), representam uma melhoria de infraestrutura para receber cientistas, e a demanda por acomodações e laboratórios deve aumentar. Mas essa é só uma parte da história para quem quer pesquisar o continente gelado.

O primeiro passo para trabalhar por lá é entrar em um dos 19 projetos em andamento que compõem a pesquisa do Programa Antártico Brasileiro (Proantar). A cada três ou quatro anos, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lança editais. Quem tem o projeto aprovado ganha acesso à nova estação e à infraestrutura oferecida pela Marinha. Mas o trabalho in loco requer preparo.

— O estudante precisa ser perseverante. Trabalhar aqui é muito difícil. Para chegar é no mínimo uma semana de viagem. Uma fase da operação dura um mês, e você consegue trabalhar só três ou quatro dias. O clima não deixa vocêa tuarem campo. Às vezes, às 8h, o céu está azul, às 9h, neva e, logo depois, aparecem ventos de 150 km/h. Exige preparação —conta o professor Luiz Rosa, da Universidade Federal de Minas Gerais, há 12 anos pesquisando fungos antárticos.

Conforto e praticidade

Os cientistas se entusiasmaram com as novas instalações. Os biólogos, por exemplo, conseguem coletar o material em campo e examiná-lo com equipamentos adequados. No caso da botânica, é possível extrair o DNA das plantas e estabilizar amostras para enviá-las ao Brasil para o sequenciamento genético.

— Se a pessoa vier bem organizada, pode coletar os dados, processar as análises e já sair com um artigo científico pronto —diz o botânico Paulo Câmara, da Universidade de Brasília (UnB), que estuda há seis anos as 116 espécies de plantas na região.

Para Rosa, a estação brasileira na Antártica talvez esteja “entre as três mais bem equipadas do mundo”.

No entanto, o trabalho por lá historicamente representa menos de 30% da pesquisa brasileira na Antártica. O restante é feito no navio Almirante Maximiano ou em acampamentos, com recursos modestos. O Brasil possui também um pequeno módulo de pesquisa atmosférica, o Criosfera 1, instalado a 2.500 km ao sul de Comandante Ferraz, no meio do continente antártico, área inóspita que só acomoda visitas no verão.

A verba para essas outras atividades não está garantida. O Criosfera 2, por exemplo, que complementa o primeiro módulo, já foi construído, mas está parado em Porto Alegre. A falta de verbas atrasou sua instalação.

O Proantar tem atualmente aporte de verbas previsto até 2022, situação relativamente confortável se comparada ao atual cenário de escassez de verba para ciência no Brasil. A preocupação, porém, éc oma instabilidade de recursos no longo prazo.

— Você imagina que vai terminar a pesquisa em três anos, só que dura mais dois, e o dinheiro não aumenta — observa Câmara, que lembra que ainda não é possível fazer 100% da pesquisa in loco: — No meu caso, de DNA, o sequenciamento precisa ser concluído no continente. Quem normalmente faz esses estudos são os alunos, através dos programas de pós-graduação oferecidos pelas universidades federais. E, para isso, a gente precisa das bolsas.

Áreas prioritárias

Hoje é possível um aluno de iniciação científica desenvolver um trabalho de campo na Antártica, algo que nem sempre foi possível. Jefferson Simões, o coordenador da área científica do Proantar, já tem 30 anos de experiência no continente, e lembra de quando as viagens não eram tão frequentes.

— Demorei para pisar na Antártica pela primeira vez porque fiz meu doutorado antes. A primeira vez foi em 1990, quando voltei de Cambridge —conta.

Simões foi um dos cientistas que definiram o planejamento estratégico para a pesquisa antártica, e lista as áreas prioritárias agora.

— Os principais estudos estão nas conexões do clima antártico com o brasileiro, como implementar modelos meteorológicos e climáticos para avaliação do mar congelado antártico —explica ele: — Outra é a questão do impacto do derretimento de gelo da Antártica no nível médio dos mares. Isso tem implicações para a costa brasileira.

Bolsonaro cancela videoconferência durante evento de reinauguração

O presidente Jair Bolsonaro cancelou a videoconferência que faria ontem durante a reinauguração da Estação Antártica Comandante Ferraz. A informação só chegou uma hora e meia antes da cerimônia.

A organização do evento trabalhou mais de um ano planejando a solenidade com a presença de Bolsonaro, o que daria maior peso político ao evento. Mas o presidente anunciou às vésperas do Natal que não poderia ir à Antártica por outro compromisso.

Um militar contou que houve desapontamento com a notícia. A decisão do vice-presidente, Hamilton Mourão, de participar da cerimônia atenuou um pouco a frustração. Os ministros Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), Fernando Azevedo e Silva (Defesa) e Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura) também viajaram à Antártica.

A comitiva teve dificuldades para chegar à nova base. O voo do Aeroporto de Punta Arenas, no extremo sul do Chile, em direção à Ilha Rei George, onde fica a Estação Comandante Ferraz, decolaria na terça-feira, mas a viagem foi adiada devido ao mau tempo, que impediu a viabilidade para pouso no continente gelado.

A presença de Bolsonaro já havia sido anunciada na reinauguração, programada inicialmente para março do ano passado. Como o presidente estava se recuperando de cirurgia, não poderia comparecer. Um grupo de jornalistas chegou a ser levado à estação, que já estava pronta, embora ainda houvesse alguns detalhes a serem acertados.

A cerimônia de inauguração, que ocorreu na área externa da base, foi breve devido às péssimas condições meteorológicas. A previsão era a de que o evento ocorresse sob temperatura de 0 grau Celsius e sensação térmica chegando a -17oC.