O Globo, n. 31590, 02/02/2020. Sociedade, p. 42

A vida nos tempos do coronavírus
Mariana Nascimento


Ruas desertas, centros comerciais fechados, supermercados vazios. A vida dos moradores de Cantão, terceira maior capital chinesa, com cerca de 14,5 milhões de habitantes, transformou-se em janeiro em um cenário distópico digno de filmes de invasão zumbi, inclusive durante o mais importante feriado local, o Ano Novo chinês.

O medo do surto iminente do novo coronavírus fez com que a população deixasse de ir às ruas e se exilasse dentro de suas próprias casas. Só se aventura pelas calçadas para comprar comida e máscaras de proteção. Os poucos que ainda arriscam dar um passeio não conseguem deixar de ver os painéis eletrônicos gigantes que dão dicas sobre as medidas de proteção contra o vírus.

A gaúcha Eduarda Justo, de 26 anos, estudante do curso de Mandarim na Universidade de Estudos Estrangeiros de Cantão, relata como sua vida mudou repentinamente. De férias, ela costumava circular pelo campus, almoçava com amigos, participava de eventos acadêmicos e grupos de estudos, e saía à noite. Não mais.

— De repente, tudo mudou. Não há ninguém nas ruas, o transporte público está escasso — diz.

Desejo de partir

A estudante relata que tem colegas de curso de diferentes nacionalidades: italianos, espanhóis, marroquinos e coreanos. Hoje todos estão ainda mais unidos por um desejo em comum: — Partir. Todos os meus amigos já foram ou estão indo embora. Ninguém mais quer ficar — diz.

Ela mesma comprou uma passagem, para a Itália, para o início de fevereiro, mas o voo foi cancelado. Apesar de querer rever os familiares no Brasil, o preço dos bilhetes aéreos para o país disparou, o que a desestimulou de voltar. — Minha família está preocupada, achando que estamos vivendo um pesadelo apocalíptico. Minhas tias choram ao ver as notícias — afirma.

O maior receio de Eduarda, no entanto, é o da propagação do terror entre as pessoas. O clima de medo tem piorado com o aumento do número de mortos. Em toda China, ele chegou a 259. O número de casos confirmados no país já é de 11.955. Na cidade de Cantão, segundo informações do site de notícias oficias da província, 112 infecções por coronavírus foram confirmadas até a manhã de sexta-feira.

— Mais do que contrair o vírus, tenho medo é do caos que ainda pode se propagar aqui. É complicado transitar pelo campus agora. Em todos os lugares eles medem sua temperatura e pedem sua identidade — conta. Segundo informações divulgadas no site da Comissão Nacional de Saúde da China, o novo coronavírus pode atingir seu pico de transmissão dentro dos próximos 10 dias. E, assim como aconteceu em Wuhan, a 1h50m de avião de Cantão, Eduarda teme um futuro toque de recolher oficial nas universidades da cidade em que vive.

No dia 27 de janeiro, em entrevista para a rede de televisão pública da China continental, o prefeito de Wuhan admitiu que as autoridades da cidade esconderam da população informações sobre o coronavírus. Liu Lixing, de 19 anos, também estudante universitário, critica o governo por ter demorado a divulgar informações mais claras sobre o novo vírus no início da epidemia. — Fiquei assustado com a falta de informação oficial. Mas agora acredito que a situação já esteja mais controlada — relata.

A família de Liu é de Cantão e o estudante agora passa os dias com eles, sem sair de casa.

Mémoria da Sars

Entre 2002 e 2003, a explosão da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) causou a morte de 349 pessoas no país, das quais 299 em Hong Kong, a 1h de avião de Cantão. Liu conta que, em 2003, um amigo próximo da família contraiu o vírus.

— Ainda era bem criança, mas meus pais contam que muitas pessoas foram infectadas por falta de informação. Naquela época, aqui em Cantão, ninguém usava máscara — lembra.

O amigo da família se recuperou, mas as sequelas foram graves:

— Ele acabou perdendo os movimentos do corpo, pois os médicos tiveram que usar grande quantidade de hormônios no tratamento do vírus. O que nos resta agora é nos proteger.

Mas ainda há quem desafie o toque de recolher coletivo em Cantão. O professor universitário Vitek Zednik, de 32 anos, por exemplo, não abriu mão de se exercitar ao ar livre, exatamente como fazia antes da explosão de casos da doença. E, agora, tem as ruas à sua disposição. O tcheco, na China desde 2010, acha que o exagero tomou conta da cidade nos tempos do coronavírus:

— Há problemas maiores que causam mais mortes, mas agora todos só falam disso. A maioria das pessoas que morreram já estava com a saúde debilitada. Não estamos vivendo o fim do mundo.