O Globo, n. 31590, 02/02/2020. Sociedade, p. 44

Brasil é o país com mais vírus desconhecidos no mundo
Ana Lucia Azevedo


Quando foram encontrados, dois deles agonizavam. Um terceiro estava morto. Eram catetos, um pequeno porco selvagem brasileiro, e morreram vítimas de uma espécie de coronavírus até agora desconhecida. A descoberta de um novo vírus que infecta suínos silvestres em florestas do Brasil é de uma equipe da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O local da descoberta é sigiloso porque o estudo está em andamento. Não há motivo para alarde porque esse coronavírus é inofensivo para o homem, destacam os cientistas. Mas se trata de um alerta sobre a enorme diversidade de vírus desconhecidos no Brasil, o país que potencialmente tem o maior número de espécies desses microrganismos. E que, frisam cientistas, exatamente como a China, deveria investir maciçamente em pesquisa científica antes que eles se tornem uma grande ameaça para a saúde e o agronegócio.

O melhor controle

Graças à ciência foi possível a detecção rápida do coronavírus chinês, o 2019-nCoV, e o combate às epidemias de zika, no Brasil, e ebola, na África. “Ciência é a forma de se controlar vírus”, declarou na semana passada o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Ghebreyesus.

— Temos a Amazônia, a maior floresta tropical do mundo e certamente a que mais tem vírus. Possuímos um grande patrimônio natural. Mas é preciso conhecê-lo e saber como lidar com ele. Para o nosso bem e o da nossa economia — salienta Amílcar Tanuri, chefe do Laboratório de Virologia Molecular da UFRJ, que tem trabalhos pioneiros sobre zika e participou da contenção de epidemias de vírus ebola e marburg na África. O Brasil jamais teve microrganismos que originassem uma epidemia semelhante à chinesa, mas vírus hemorrágicos ou causadores de encefalite têm emergido, provocado casos esporádicos letais e misteriosamente desaparecido. É o caso do arenavírus, que matou um homem em São Paulo em 11 de janeiro.

À medida que mais gente entra nas florestas e a fronteira agrícola avança sobre a Amazônia, mais se entra em contato com esses vírus e aumenta a chance de que cruzem a barreira das espécies e passem a infectar o homem, explica Tanuri. Ele acrescenta que todos os ambientes do Brasil têm, potencialmente, novos vírus. Líder do grupo que fez a descoberta, o geneticista da UFRJ André Santos explica que não existe um número estimado de vírus no Brasil. Supõe-se que haja 1,67 milhão de diferentes vírus infectando aves e mamíferos no mundo.

— Não conhecemos nem 2% dos vírus do Brasil — frisa Pedro Vasconcelos, da Universidade do Estado do Pará e presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Ele é um caçador de vírus. Participou do isolamento da maioria dos cerca de 250 vírus amazônicos descobertos pelo Instituto Evandro Chagas, no Pará, a instituição do mundo com o maior número de descobertas do tipo, e defende que o Brasil invista nesse tipo de pesquisa o quanto antes. A mesma opinião têm Tanuri e Santos. Eles destacam que o país ainda não possui um laboratório de segurança máxima, o de nível 4. Por isso, não pode isolar e estudar, por exemplo, um arenavírus como o que fez a vítima de febre hemorrágica, em São Paulo. O vírus será enviado aos EUA.

— Não podemos ficar à mercê de outros países. Uma coisa é colaborar, outra é ser dependente. O monitoramento do vírus previne doenças em seres humanos — diz Tanuri. Santos acrescenta que alguns vírus podem não ser nocivos para a saúde humana, mas são devastadores para animais domésticos. Exemplos são as gripes suínas e aviárias, que causaram a morte de milhões de animais com imensos prejuízos para o agronegócio. Rodrigo Brindeiro, também pesquisador da UFRJ, lembra que a China se desdobra para descobrir de qual animal o coronavírus 2019-nCoV veio. Isso é fundamental para conhecer a evolução da doença e encontrar formas de preveni-la, tratá-la e contê-la.

Conservar é preciso

Mais do que um laboratório de segurança máxima, o país precisa também de pesquisa com equipamentos e insumos que permitam, por exemplo, a identificação de microrganismos em campo em tempo real, diz Renato Pereira de Souza, do Instituto Adolfo Lutz. O grupo da UFRJ estuda a fauna silvestre brasileira — de felinos a ouriços-cacheiros — para identificar vírus que possam causar doenças em seres humanos e animais domésticos.Também investiga a transmissão de animais domésticos para selvagens e vice-versa.

Em porcos do mato, eles encontraram, além de coronavírus, papilomavírus (a maioria é inofensiva, mas alguns causam desde verrugas a lesões no colo do útero, que podem evoluir para câncer, a exemplo do HPV humano), também identificados em jaguatiricas, micos-de-cheiro e gambás. Os cientistas são unânimes em frisar que conservar as florestas é uma forma de manter vírus potencialmente perigosos longe de nós, sob controle. Já destruir as matas é abrir caminho para novos vírus. Eles se adaptam a novos hospedeiros e seguem para as cidades.