O Globo, n. 31591, 03/02/2020. País, p. 4

Judiciário automatizado
Leo Branco


Num país em que a Justiça leva em média quatro anos para decidir um caso e há mais de 78 milhões de processos à espera de uma sentença, juízes estão recorrendo à tecnologia na tentativa de limpar escaninhos. De varas de primeira instância ao Supremo Tribunal Federal (STF), cada vez mais magistrados usam softwares de inteligência artificial, em que robôs virtuais desempenham tarefas antes executadas por humanos.

Para além de uma tentativa de ganhar tempo, a tendência da Justiça replica uma corrida por eficiência já comum em escritórios de advocacia. O uso da inteligência artificial na Justiça ganhou peso há um ano, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que dá diretrizes ao trabalho de juízes, publicou uma portaria elencando a adoção desse modelo como uma das prioridades para desafogar a fila de processos país afora.

Desde então, iniciativas esparsas ganharam força. É o caso do Leia, um robô virtual que lê milhões de páginas em segundos para identificar casos com jurisprudência no STF — e que, portanto, dispensam novas teses jurídicas. Em setembro do ano passado, o Leia escaneou 1,9 milhão de processos em fóruns de cinco estados: Acre, Alagoas, Amazonas, Ceará e Mato Grosso do Sul. A análise identificou jurisprudência em 8% dos casos.

As conclusões estão agora nas mesas dos magistrados para avaliação.

— O robô levou 240 horas no trabalho. Se feito de forma manual, por uma pessoa, levaria 950 mil horas, o equivalente a 108 anos — diz Tiago Melo, especialista da Softplan, empresa de TI fornecedora de tecnologias para justiças estaduais e criadora do Leia.

No Tribunal Superior do Trabalho (TST), órgão máximo para solução de disputas trabalhistas, um robô chamado Bem-Te-Vi, desenvolvido por servidores do órgão em outubro de 2018, analisa os prazos legais das ações encaminhadas para lá e informa a magistrados e técnicos as prioridades do órgão.

A ideia é evitar atrasos no andamento processual de casos urgentes ou perda de tempo com processos que já caducaram. A iniciativa elevou a produtividade. Segundo a assessoria do órgão, no ano passado, o TST julgou 331.040 processos, 3,5% mais que em 2018.

Em alguns casos, os robôs acabam com gargalos no caminho de uma decisão judicial. Em Pernambuco, por exemplo, faltava gente para dar conta de tantos processos de cobrança de tributos municipais — são 80 mil por ano só em Recife. Com isso, uma ação demorava um ano e meio para começar a ter encaminhamento.

Criado em 2018 por servidores do Tribunal de Justiça de Pernambuco, o robô Elis escaneia esse tipo de processo para detectar o conteúdo e a vara mais indicada que irá julgá-lo. Hoje, processos desse tipo não demoram mais que 15 dias para ter algum tipo de andamento.

O interesse no uso de inteligência artificial chegou até mesmo ao STF. Em setembro, o presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, organizou um seminário para discutir o tema com especialistas britânicos, um dos países mais avançados no uso de inteligência artificial na justiça.

Por lá, robôs rastreiam inquéritos em busca de palavras-chave usadas por partes que acabaram indo parar na prisão. O objetivo: decifrar padrões de comportamento dos presos para, assim, prevenir riscos como uma rebelião. Além disso, o STF tem um robô, desenvolvido com a Universidade de Brasília, chamado Victor, e que vem ajudando os servidores da Corte a definir quais temas são de repercussão geral, ou seja, envolvem muitos processos.

A corrida de órgãos da justiça pela inteligência artificial replica, em certa medida, uma prática adotada há alguns anos por advogados.

— Em média, os advogados economizam 35% do tempo com a redação das petições — diz Gabriel Senra, fundador da Linte (startup de tecnologia para o setor jurídico), que diz ter triplicado o faturamento no ano passado.

Impacto no emprego

A migração de tarefas feitas por humanos para a alçada de robôs vem ceifando milhares de empregos em setores como a manufatura e o telemarketing. No mundo jurídico brasileiro, por ora, esse é ainda um risco baixo. A começar pelo fato de que a fila de processos parados — e de trabalho por fazer — é imensa em todas as instâncias de decisão.

Boa parte da burocracia automatizada é hoje feita por servidores com estabilidade no cargo. Além disso, a escala de serviços automatizados é tão pequena no Brasil que uma mudança profunda nos empregos neste setor ainda vai demorar.

— As iniciativas de inteligência artificial na Justiça ainda são isoladas. Falta um plano nacional para massificara tecnologia e definir novos papéis a quem vai ter funções automatizadas — diz ajuíza federal Isabela Ferrari, doutoranda pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e pesquisadora visitante da Universidade Harvard sobre o uso de tecnologia no Direito.