O Globo, n. 31591, 03/02/2020. Sociedade, p. 17

Fuga do coronavírus
Gustavo Maia
Eliane Oliveira
Eduardo Vanini
André De Souza


O governo federal vai trazer de volta ao país os cidadãos brasileiros que queiram retornar da província chinesa de Hubei, onde fica a cidade de Wuhan, epicentro da epidemia do novo coronavírus. Assim que chegarem ao Brasil, passarão por quarentena “de acordo com procedimentos internacionais” e sob orientação do Ministério da Saúde.

Dois dias antes do anúncio, na sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro disse que eles seriam trazidos de volta se o Congresso autorizasse a realização de uma quarentena. Mas, ontem, um grupo de brasileiros divulgou um vídeo com uma carta-aberta pedindo ajuda ao governo. O vírus já matou 362 pessoas —361 na China e uma nas Filipinas, a primeira morte fora do país de origem da doença. Mais de 17 mil pessoas já foram contaminadas.

Outros países já retiraram seus cidadãos de Wuhan, como a Áustria, a Coreia do Sul, os EUA, as Filipinas, a Espanha, a Alemanha, o Japão e a Índia. Um voo francês buscou cidadãos da União Europeia e levou também duas brasileiras que tinham nacionalidade portuguesa. Elas farão a quarentena na Europa.

O recuo do governo brasileiro veio depois de o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), afirmar que a decisão de repatriar essas pessoas não dependeria do Congresso. Ele enfatizou ainda que, caso o presidente decidisse pedir avala o Congresso, não teria problema em obtê-lo.

— Se nós pudermos fazer esse gesto de buscá-los, leválos a um quartel ou a uma base militar para cumprir quarentena, basicamente não precisa de uma lei. É uma decisão. Não é uma questão de legislação —afirmou Alcolumbre.

Segundo nota dos ministérios das Relações Exteriores e da Defesa, a Força Aérea Brasileira “trabalha na elaboração do plano de voo da aeronave, possivelmente fretada, que será enviada à China”. Os detalhes da operação, que está em planejamento, ainda serão informados. A Embaixada do Brasil em Pequim entrará em contato com os brasileiros para organizara viagem. O Ministério da Saúde deverá divulgar hoje os detalhes da quarentena.

No vídeo publicado no YouTube, os brasileiros na China citaram as operações de evacuação já feitas por outros países e disseram que estão dispostos a passar por quarentena. A gravação é de 30 de janeiro, tem pouco mais seis minutos de duração e é destinado nominalmente a Bolsonaro e ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.

“Nós somos homens, mulheres e crianças de vários estados e regiões do Brasil. Estudantes e trabalhadores, indivíduos e famílias de brasileiros na China ”, disse um rapaz .“No momento em que essa carta está sendo escrita, não há, entre nós, quaisquer casos de contaminação comprovada ou até mesmo sintomas de infecção por coronavírus ”, destacou outra pessoa.

— É difícil dar uma data, existem várias variáveis que estão se encaixando: a negociação com o governo chinês, o plano de voo, escala, a montagem do sistema aqui da quarentena. Mas isso é uma questão para muito breve — disse Araújo, ao “Fantástico”.

Dúvida legal

Segundo o médico Érico Arruda, que já presidiu a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI),a quarentena é uma medida adequada, tendo em vista se tratar de um vírus novo sobre o qual pouco se sabe.

O infectologista também explicou que é preciso encontrar um local em que seja possível acomodar todos e controlar o fluxo de pessoas, o que seria difícil de fazer num hospital da rede pública. Um lugar possível seria uma base militar. O tempo de isolamento seria aquele em que se acredita que o vírus pode ser transmitido: 14 dias. Outros cuidados que devem ser tomados é com o sistema de ar condicionado, que poderia espalhar o vírus; e com o descarte de resíduos, que poderiam ser queimados ou jogados fora somente depois do tempo em que o vírus não mais sobreviveria.

Na sexta-feira, Bolsonaro disse que haveria o risco de o governo ser alvo de uma ação judicial caso trouxesse os brasileiros e os colocasse em quarentena. Ele ainda apontou o risco de contágio no país.

—Nós não temos uma lei de quarentena. Ao trazer brasileiros para cá, nossa ideia obviamente é colocar em um local para quarentena, mas qualquer ação judicial tira de lá. E aí seria uma irresponsabilidade de quem, por ventura, decidir nesse sentido — disse.

Médico epidemiologista e pesquisador da Fio cruz, Eduardo Hage diz que não há consenso jurídico no Brasil sobre a possibilidade da quarentena.

— Alguns juristas afirmam que há no Código Penal previsão de que, para proteção sanitária, o Estado poderia aplicar algumas penas ao cidadão. Mas isso não está de forma clara — afirma Hage.

— Outros já consideram que ainda são necessários ajustes na lei.

Ao “Fantástico”, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, não garantiu que o SUS está preparado para um surto da doença.

— Depende do número de casos. A gente está se preparando para aumentar o número de leitos — afirmou.

Já a China concluiu, em dez dias, um hospital de mil leitos para tratar pacientes afetados pelo coronavírus, em Huham. Cem tratores e quatro mil operários trabalharam na obra. Está planejada uma segunda unidade hospitalar para acidade.