O Globo, n. 31604, 16/02/2020. País, p. 16

Capitais erram em obras de prevenção de chuva

Bernardo Mello

 

Mesmo sendo atingidas por temporais que causaram enchentes e deslizamentos, capitais como Rio, São Paulo e Belo Horizonte vêm adotando medidas na contramão do recomendado por órgãos públicos e especialistas para aumentar a resiliência das cidades aos chamados “eventos climáticos extremos”. No Rio, o valor gasto para proteção de encostas atingiu, nos últimos três anos, seu patamar mais baixo na década. Em São Paulo, a lentidão para implementar medidas do plano de drenagem da cidade, como áreas verdes nos chamados “fundos de vale”, é alvo de apuração do Ministério Público.

Na capital mineira, o novo plano diretor foi corrigido para impedir a canalização de rios após os estragos deixados por temporais deste ano, mas especialistas apontam obras com esta finalidade ainda estão em andamento. Embora o volume de chuva nos três estados esteja abaixo da média dos últimos anos até aqui, a ocorrência de temporais concentrados em curtos períodos de tempo tem mostrado, segundo especialistas, a necessidade de que as cidades sejam mais resistentes em um cenário de mudança climática. Segundo o meteorologista Marcelo Seluchi, do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), foram registrados três eventos extremos — chuvas acima de 100 mm em 24h — nas últimas três semanas. Em São Paulo, um desses eventos causou alagamentos em mais de 70 pontos da capital na última semana. A cidade já havia sofrido com temporais em março do ano passado, com 13 mortes na Região Metropolitana. Meses depois, o prefeito Bruno Covas (PSDB)enviou à Câmara Municipal uma alteração no plano diretor do município, redirecionando para a implementação de ruas e avenidas verbas que antes eram reservadas para o transporte coletivo. O Ministério Público (MPSP) contestou a alteração.

O urbanista Nabil Bonduki, relator do Plano Diretor de São Paulo em 2014, vê na medida de Covas uma repetição da escolha de gestões anteriores por obras de pavimentação que deixam o solo mais impermeável, dificultando a drenagem da chuva. Bonduki cita como exemplo a duplicação da Marginal Tietê em 2009, na prefeitura de José Serra, com a remoção de mais de mil árvores. A região foi uma das mais afetadas por alagamentos nesta semana.

— São ações na contramão do que deveria ser feito. Você não vai combater mudança climática estimulando uso de automóvel. O plano diretor previa 167 novos parques, alguns lineares ao longo dos rios, para facilitar a contenção da água da chuva. Isso não foi implementado. O sistema de drenagem não está preparado para precipitações intensas em períodos curtos — explica Bonduki.

Recursos mal investidos

Dos 167 parques previstos, só três foram inaugurados, um deles por Covas, que prometeu dez novos espaços até o fim deste ano, ao custo oficial de R$ 35 milhões. Para a urbanista Taícia Helena Marques, o investimento em drenagem ecológica e de baixo impacto — isto é, sem depender dos piscinões — é essencial em áreas de fundo de vale, como é chamado o ponto para onde a água é escoada.

— São Paulo e Belo Horizonte hoje têm problemas por conta de sua opção histórica de canalização de rios em prol do interesse viário. Os piscinões seguem essa mesma lógica de bloquear processos naturais. É preciso adotar métodos de qualificação ambiental, e não só no fundo de vale, mas também em toda a bacia hidrográfica de rios — avalia Marques. Crítico do planejamento da prefeitura, Nabil Bonduki citou o Parque Augusta, no Centro, como exemplo de “recursos mal investidos”.

Para abrir o parque, o município dará contrapartida de R$ 205 milhões em créditos imobiliários para construtoras que disputavam o terreno. Procurada, a prefeitura de São Paulo afirmou que a criação de parques é “um instrumento privilegiado que deve ser utilizado para a minimização de enchentes” e garantiu o cumprimento da meta de inaugurar dez parques até o fim do ano. Em Belo Horizonte, quase 30% dos 700 km de rios e córregos estão canalizados ou tampados. O urbanista Roberto Andrés, da UFMG, lembra que a canalização acelera o escoamento da água da chuva, aumentando sua concentração em áreas mais baixas da cidade.

A pavimentação das várzeas de rios também atrapalha a drenagem e facilita enchentes, como as que tomaram desde áreas periféricas até bairros nobres da capital mineira, que registrou 13 das 58 mortes no estado por conta das chuvas. Em meio à tragédia deste ano, a prefeitura alterou o plano diretor que ela mesma havia sancionado e vetou a possibilidade de canalização de rios, antes prevista. A própria secretaria de Obras, no entanto, informa duas licitações em andamento, envolvendo canalização no Ribeirão da Onça e “tamponamento” — isto é, cobrir parte do rio —no canal do Ribeirão dos Arrudas. O valor total, previsto em edital, beira os R$ 135 milhões.

— Este é um modelo que deixou a cidade menos resiliente. Ela sofre com enchentes há mais de cem anos, terá ainda mais problemas com as mudanças climáticas, e os atores políticos não têm sinalizado a mudança de paradigma necessária — disse Andrés. Procurada, a prefeitura de Belo Horizonte informou que essas e “todas as obras similares estão passando por reanálise”, e disse que a atual gestão de Alexandre Kalil (PSD) investiu um total de R$ 81,9 milhões em obras como desassoreamento e construção de bacia de detenção de rios.

Plano descumprido

No Rio,uma auditoria técnica do Tribunal de Contas do Município (TCM) em 2018 afirmou que a prefeitura vem descumprindo a maioria dos itens do Plano Diretor de Manejo de Águas Pluviais, de 2014, com recomendações de obras que deveriam ser realizadas ainda nesta década. Entre as medidas ignoradas pelas gestões de Eduardo Paes (DEM) e Marcelo Crivella (Republicanos) está a dragagem e recuperação do sistema lagunar de Jacarepaguá, prevista no caderno de encargos dos Jogos Olímpicos de 2016. Para o urbanista Carlos Vainer, da UFRJ, as ações realizadas pela prefeitura e citadas pelo TCM, como a construção de três reservatórios na Tijuca, Zona Norte do Rio, são insuficientes.

— Os piscinões são paliativos, já que não mexem na estrutura da cidade. É enxugar gelo — afirmou. — Existem ações de planejamento, de um lado, e ações de intervenção emergencial, de outro. No caso do Rio, há uma falha completa nos dois lados. Técnicos do TCM também apresentaram, na CPI das Enchentes de 2019, estudos que apontavam a redução dos investimentos da prefeitura em proteção de encostas e controle de enchentes. O orçamento para projetos em áreas de risco foi reduzido em mais de 75% entre 2018 e 2019.

A auditoria do TCM foi citada pelo Ministério Público (MPRJ) ao ingressar com ação, em janeiro deste ano, exigindo que a prefeitura cumpra as metas do plano de drenagem e apresente projetos de redução do impacto de chuvas. Procurada, a prefeitura disse que a ação do MP é uma “drástica intervenção do Poder Judiciário na política municipal de drenagem urbana” e que pediu a extinção do processo por já haver outra ação em andamento, da Defensoria Pública. A prefeitura também afirmou que as verbas para proteção de encostas foram “compatibilizadas de acordo com a necessidade e o orçamento disponível”. A Fundação Rio-Águas disse que “trabalha na revisão de estudos e projetos” do plano de manejo de águas pluviais.