O Globo, n. 31594, 06/02/2020. País, p. 6

Em própria defesa

Amanda Almeida
Bruno Góes
Isabella Macedo
Natália Portinari


Na primeira semana de trabalho após o recesso, o Congresso contrariou ontem duas decisões do Judiciário. A Câmara derrubou determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), de dezembro, que afastou do mandato o deputado Wilson Santiago (PTB-PB), denunciado por corrupção. O Senado, por sua vez, não vai acatar posição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pelo afastamento imediato da senadora Selma Arruda (PSL-MT), condenada à cassação por abuso de poder econômico e caixa dois.

A decisão foi do plenário da Câmara. Foram 233 votos para reverter a decisão do Supremo, 170 contrários e sete abstenções. Santiago é investigado por ter recebido propina referente a obra de um sistema adutor no interior da Paraíba. Questionado sobre a decisão, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEMRJ), argumentou que, como o afastamento se deu durante o recesso parlamentar, Santiago não teve como se defender nem teria como usar o mandato para atrapalhar a investigação. Mas reconheceu que o resultado da votação é constrangedor.

— Ninguém está dizendo que não é grave, ninguém está dizendo que não constrange. Mas o ambiente correto (para se afastar um parlamentar do mandato) é o Conselho de Ética ou a própria condenação pelo Supremo —disse Maia, em entrevista à “Globo News”.

No relatório aprovado pelos colegas, o relator Marcelo Ramos (PL-AM) afirmou que havia um “precedente perigoso” e uma “cassação prévia” no afastamento, imposto de forma monocrática pelo decano do Supremo, ministro Celso de Mello.

— Prerrogativas parlamentares são essenciais em qualquer democracia. Prerrogativas não pertencem ao parlamentar, pertencem à democracia.

O afastamento cautelar de um deputado do exercício de um mandato não cuida de uma questão meramente individual —afirmou.

O relatório recomenda que agora seja instaurado um processo no Conselho de Ética para apurar “quebra de decoro diante dos fatos relatados no mérito da investigação”. A mesa diretora da Câmara irá entrar com uma representação contra o deputado.

Santiago foi um dos alvos da operação Pés de Barro da Polícia Federal, que investiga superfaturamento na construção da“Adutora Capivara ”, sistema adutor que deves e estender do município de São José do Rio do Peixe ao município de Uiraúna, no Sertão da Paraíba. As obras foram contratadas por R$ 24, 8 milhões e teria havido até agora distribuição de propinas no valor de R$ 1,2 milhão.

Na investigação há um vídeo em que um prefeito aliado ao parlamentar coloca na cueca dinheiro que seria de propina. Nas buscas realizadas na casa de Santiago, a Polícia Federal encontrou um celular escondido dentro de uma caixa de remédios.

O advogado de Wilson Santiago, Luiz Henrique Machado, argumentou que a decisão de Celso de Mello é inconstitucional por não ter prazo. Segundo ele, por se tratar de uma medida cautelar, só seria justificada se o parlamentar apresentasse riscos à investigação ou à sociedade.

A articulação para devolver o mandato ao deputado foi comandada pelo centrão e por Maia. Em reunião na Secretaria Geral da Mesa da Câmara, segundo fontes ouvidas pelo Globo, Fábio Trad (PSD-MS), que tinha sido escolhido como relator por Maia, foi pressionado a elaborar o parecer com a menção a uma “inconstitucionalidade” do ministro Celso de Mello.

Trad disse, então, que faria um relatório pedindo que o STF colocasse um prazo na suspensão, mas que iria defender o afastamento. Líderes do PP, PL e outros partidos do centrão discordaram. Após cerca de cinco horas, Trad saiu nervoso da reunião e disse que não seria mais o relator. Marcelo Ramos então assumiu a missão.

Senado discute cassação

O Senado contrariou ontem uma decisão judicial, mas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Quase dois meses depois de o tribunal ter cassado o mandato da senadora Selma Arruda (Podemos-MT), o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), anunciou que submeterá a determinação à Mesa Diretora da Casa. No julgamento do caso em dezembro, os ministros do TSE estabeleceram que a decisão deveria ser cumprida imediatamente, independentemente da apresentação de recursos.

Condenada por abuso de poder econômico e caixa dois, Selma segue no mandato, recebendo remuneração, mesmo depois da publicação do acórdão do julgamento do TSE. Ontem, Selma participou de atividades no Senado e de um almoço da bancada do Podemos. Segundo colegas, ela disse que frequentará o Senado normalmente até que a cassação seja oficializada.

Alcolumbre disse que seguirá o trâmite estabelecido pela Mesa Diretora do Senado em 2005, quando o então senador João Capiberibe (PSB-AP) foi cassado. O processo começará com uma reunião da Mesa, na qual será designado um relator para o caso. Depois, a senadora terá 10 dias para apresentar a defesa. O relator tem, então, cinco dias para dar seu parecer. A Mesa o vota e comunica o resultado ao plenário.

— Se acontecer de a votação da Mesa não seguir a decisão do TSE, vai ser o primeiro fato concreto em relação a isso. Porque no único episódio (Capiberibe) que teve, a Mesa seguiu a decisão do tribunal —disse Alcolumbre ao fim da sessão.

“Se acontecer de a votação da Mesa (do Senado) não seguir a decisão do TSE, vai ser o primeiro fato concreto em relação a isso.”

Davi Alcolumbre, presidente do Senado

“Ninguém está dizendo que não é grave, ninguém está dizendo que não constrange. Maso ambiente correto (para se afastar um parlamentar) é o Conselho de Ética ou a própria condenação”

Rodrigo Maia, presidente da Câmara

Outros embates entre o legislativo e o judiciário

1. Eduardo Cunha é afastado do comando da Câmara

Em maio de 2016, o então presidente da Câmara Eduardo Cunha enfrentava um processo de cassação de mandato no Conselho de Ética da Câmara quando foi afastado do cargo por liminar do ministro Teori Zavascki. A decisão foi baseada na acusação de que Cunha usava o cargo para interferir nas investigações contra ele e que não poderia se manter na linha de sucessão da Presidência da República sendo réu . A Câmara cumpriu a decisão, mas PP, PSC e Solidariedade entraram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) pedindo para que sanções como prisão preventiva fossem submetidas para validação do Congresso em 24h.

2. Senado não cumpre decisão sobre Renan Calheiros

O ministro Marco Aurélio Mello determinou, através de liminar, em dezembro de 2016, o afastamento de Renan Calheiros (MDB-AL) da presidência do Senado, usando argumento semelhante a um dos motivos para o afastamento de Cunha: por ser réu, Renan não poderia ocupar cargo na linha sucessória da Presidência da República. O Senado resolveu, no entanto, descumprir a liminar e aguardar uma decisão do plenário do STF. Por seis votos a três, a Corte decidiu que Renan não poderia ser afastado da presidência da Casa, mas apenas perder a atribuição de substituir o presidente da República em caso de ausência.

3. Aécio Neves é afastado e depois retorna ao cargo

Após ser denunciado por corrupção passiva e com base nas delações do grupo J&F, em 2017, o então senador Aécio Neves (PSDB-MG) foi afastado do mandato por decisão da Primeira Turma do STF. Os ministros também determinaram recolhimento noturno a Aécio. Alguns dias depois, ao julgar a ADI apresentada após o afastamento de Cunha, a Corte decidiu que as medidas cautelares determinadas pela Justiça devem ser validadas pelo Casa legislativa. Esta decisão criou a jurisprudência que permitiu à Câmara votar ontem o afastamento de Wilson Santiago. No caso de Aécio, o plenário do Senado também reverteu seu afastamento.

4. Alerj solta deputados presos, mas não devolve mandatos

Com base na decisão do STF que definiu que as casas legislativas deveriam validar medidas cautelares determinadas pela Justiça, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) colocou em votação e aprovou, no fim de 2019, a soltura de cinco deputados —André Corrêa (DEM), Luiz Martins (PDT), Marcus Vinicius Neskau (PTB), Marcos Abrahão (Avante) e Chiquinho da Mangueira (PSC) — que haviam sido presos no ano anterior na Operação Furna da Onça, um desdobramento da LavaJato. Na votação, porém, o plenário da Alerj determinou que os deputados soltos não poderiam reassumir os mandatos.