O Globo, n. 31602, 14/02/2020. Opinião, p. 2

Nada justifica atrasar a reforma administrativa



O presidente Bolsonaro já usou as manifestações violentas no Chile como pretexto para adiar o envio do projeto da reforma administrativa ao Congresso. Temia que o mesmo ocorresse aqui, numa suposição forçada. Antes disso, depois da aprovação das mudanças históricas na Previdência no ano passado, o Planalto deixou de aproveitar o momento político favorável e reteve o projeto.

Sempre é possível encontrar algum motivo para não continuar as reformas. Por exemplo, mais um comentário inadequado do ministro da Economia, Paulo Guedes, que não consegue se conter nos improvisos, embora bem articulados. Desta vez, ao falar sobre o câmbio — que se encontra num ciclo de desvalorização, muito devido à saudável queda interna dos juros —, lembrou o período em que o dólar estava em R$ 1,80, e até “empregada doméstica ia à Disney.” O conceito econômico é correto, mas a frase, um desastre.

Natural que a oposição use na luta política mais este escorregão verbal de Guedes. Mas isso não pode levar o governo a continuar a retardar o início da discussão no Congresso das também imprescindíveis medidas que modernizarão a política de recursos humanos do Estado. Elas se destinam a um contingente de mais de 600 mil servidores federais, sem considerar os aposentados. Boa parte está desmotivada, despreocupada com a qualidade de seu trabalho. Portanto, sem atender bem à população e contribuir para o bom funcionamento da burocracia pública.

Ao deixar ontem o Alvorada, o presidente Bolsonaro voltou atrás mais uma vez: disse que deverá enfim despachar a reforma para o Legislativo. A ver. Não haverá apenas alterações constitucionais, como a da Previdência. Há questões que podem ser tratadas por projetos de lei, mais fáceis de serem aprovados, por não exigirem quórum especial na votação. Mas sem a vontade política do presidente, nada feito.

O tempo passa, e a imagem de Bolsonaro se consolida como mais um político representante de corporações de servidores — no caso, militares e policiais —, entre tantos que no Congresso atravancam os projetos de atualização do velho arcabouço de leis e normas imprescindíveis para a modernização do país.

Um dos aspectos desta reforma é o combate a privilégios. Como na Previdência, que terminou aprovada no Congresso, mesmo com a exigência de no mínimo 60% dos votos. E com apoio da opinião pública, o que se imaginava impossível.

O mesmo acontecerá com as mudanças administrativas, se o governo, como nas alterações previdenciárias, enfrentar as corporações. Mesmo com os dilemas ideológicos e corporativos do presidente. Deverá ser até mais fácil, porque já existe grande aprovação popular às mudanças. Pesquisa Datafolha divulgada há pouco detectou 91% de apoio à reforma administrativa como um todo, e 88% especificamente à demissão do mau funcionário. Não há mais tempo a perder.