O Globo, n. 31601, 13/02/2020. Economia, p. 23

Reforma administrativa: proposta em banho-maria

Thais Arbex
Naira Trindade
Renato Andrade


A insegurança do presidente Jair Bolsonaro sobre ser o fiador de uma reestruturação no funcionalismo público travou, ao menos por enquanto, o avanço da reforma administrativa. Em conversas recentes, o presidente indicou a aliados não estar confortável com o texto proposto pelo Ministério da Economia e sinalizou que pode deixar a proposta em banho-maria por tempo indeterminado.

A hesitação de Bolsonaro e o consequente vaivém do governo em torno do envio de uma proposta própria de reforma administrativa ao Congresso tem como pano de fundo uma queda de braço entre a equipe econômica e ministros da “cozinha” do Palácio do Planalto.

A avaliação do entorno mais próximo ao presidente é que a proposta defendida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, pode acabar com carreiras de Estado.

Redesenho do estado

Segundo aliados, tão logo recebeu o texto de Guedes, Bolsonaro pediu que os ministros da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira; da Controladoria-Geralda União (CGU), Wagner Rosário; e da Advocacia-Geral da União (AGU), André Mendonça, avaliassem a proposta.

Nesse contexto, a atuação de Jorge Oliveira foi fundamental para segurar arroubos na proposta. Pessoas próximas ao ministro dizem que ele não é contra o projeto, mas está preocupado em preservar carreiras fundamentais para o Estado, como as jurídicas e as diplomáticas.

Depois de se debruçar sobre o texto por quase um mês, o time jurídico apresentou uma nova versão da reforma a Bolsonaro, destrinchando cada um dos itens modificados. A avaliação levada ao presidente foi a de que a proposta da Economia abriria brecha para, entre outros pontos, entregar a empresas privadas a gestão de áreas estritamente públicas.

De acordo com integrantes do alto escalão do governo, o parecer elaborado não agradou ao presidente. Tanto que, em uma reunião com a equipe econômica, Bolsonaro bateu na mesa e perguntou se alguém ali estava trabalhando para o governador de São Paulo, João Doria (PSDB) — que pretende disputar a Presidência da República em 2022.

A auxiliares, Bolsonaro demonstrou incômodo com o fato de sua equipe econômica usar a reforma gestada por seu governo para, em sua concepção, propor um redesenho do Estado que atenderia a aspirações de seu adversário político.

O GLOBO apurou que, mesmo com as mudanças feitas pelos auxiliares jurídicos, Bolsonaro tem dito que não se sente à vontade para tocara reforma. A resistências e baseia na avaliação de que, apesar de o texto estar mais alinhado às demandas do funcionalismo, o impacto político da proposta é inevitável.

Essa análise é compartilhada pelos integrantes da ala militar do Planalto, principalmente pelos generais Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, e Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional( G SI ). Eles estão no grupo de auxiliares que têm dito ao presidente que o texto não está redondo eque é preciso cautela antes de enviá-lo ao Congresso.

No Ministério da Economia, a avaliação de pessoas próximas a Guedes é que o discurso do timing político é apenas uma desculpa para blindar os servidores públicos. Ou seja, que o Planalto estaria atuando de maneira corporativista para evitar regras que podem alterar, entre os outros pontos, o regime de contratação e planos de carreira.

Em conversas recentes, Guedes tem dito não acreditar que Bolsonaro vá desistir da reforma, uma vez que teria se comprometido com ela.

Como o impasse longe de ser solucionado, auxiliares de Bolsonaro no Planalto dizem ver as digitais do chefe da Economia nos movimentos da terçafeira, quando foi citada a possibilidade de o governo abrir mão de sua proposta própria e oferecer “sugestões” a outra Proposta de Emenda à Constituição (PEC) já tramitando no Congresso. Guedes pressiona para que a reforma comece a tramitar no Congresso antes do carnaval. Na terça-feira, ele teria conversado com Bolsonaro para pedir que a proposta fosse enviada ao Legislativo no dia seguinte. O texto já estava concluído.

Preocupação eleitoral

A preocupação do ministro tem motivo: 2020 é ano eleitoral, e deputados e senadores dedicarão grande parte da agenda do segundo semestre à disputa. Assim, a discussão da reforma poderia ser prejudicada se não começasse imediatamente.

Além disso, como a reforma também atinge servidores de estados e municípios, há o te morde que parlamentares não estejam dispostos a tratar de um tema que pode prejudicálos em suas bases eleitorais.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pressionou o Planalto, deixando claro que não aceitaria a alternativa proposta. O governo foi forçado a vira público comunicar que vai mandar projeto próprio. Um dos argumento sé que haverá“vícios de iniciativa”, ou seja, só o Executivo teria competência para propor ao Congresso alterações nas regras da sua gestão.

Maia já disse que a reforma administrativa deve gerar impacto em dez anos de R$ 400 bilhões. Para especialistas, porém, a proposta não deveria ficar restrita a novos servidores.

— Tentar mudar regras para novos servidores é medida de impacto em uma ou duas décadas. O país tem um problema grave, severo, de despesa com pessoal. Tem um problema atual com o gasto público crescente — avalia Marcos Lisboa, presidente do Insper.

Analítico: apoio do mercado alivia indefinição sobre reforma

Se o Palácio do Planalto resolver, efetivamente, manter na gaveta a proposta que define novas regras para o funcionalismo público, a agenda de reformas sofrerá um baque importante, certo? Não é bem assim.

O apoio dos grandes agentes do mercado financeiro a tudo que é proposto e defendido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, é um elemento-chave na redução de danos que o engavetamento da reforma provocaria sobre as expectativas em relação ao desempenho futuro da economia brasileira.

O espírito de torcida que predomina nas principais mesas do circuito Faria Lima acabará prevalecendo e fará com que operadores, analistas e gente do mercado financeiro, em geral, comprem a ideia que começou a ser vendida pela cozinha do Planalto: a proposta de reforma administrativa não seguirá neste momento para o Congresso Nacional por conta da proximidade das eleições municipais.

A trava no andamento da agenda não tem relação com o fato de o próprio chefe da equipe econômica ter criado enorme obstáculo para tramitação de sua proposta ao classificar, de maneira indistinta, os servidores públicos como parasitas.

Em outros tempos (outros governos, outros ministros), a simples ideia de testar a audiência sobre o adiamento do envio de um item considerado fundamental para o reequilíbrio das contas públicas e retomada do crescimento sustentado já teria jogado por terra a Bolsa de Valores brasileira.

Ontem, mesmo sem indicação clara sobre o futuro da reforma administrativa — a mais desejada por Guedes —, o Ibovespa registrou mais um dia de ganhos, com 1,13%.