O Globo, n. 31597, 09/02/2020. Opinião, p. 3

Os proibidões de Rondônia

Bernardo Mello Franco


Em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro reclamou de os livros atuais serem “um montão de amontoado de muita coisa escrita”. Na quinta-feira, o governo de Rondônia resolveu tomar uma atitude. Mandou recolher 43 obras literárias das escolas públicas. No ofício que ordenou a medida, a Secretaria da Educação alegou a presença de “conteúdos inadequados” para crianças e adolescentes. O estado é governado pelo coronel Marcos Rocha, um bolsonarista de carteirinha que se elegeu pelo PSL e deve migrar para o Aliança pelo Brasil. O Index Prohibitorum incluiu clássicos como “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, “Os sertões”, de Euclides da Cunha, e “Macunaíma”, de Mário de Andrade. Também entraram na mira dois livros que já haviam sido censurados pela ditadura militar :“O atoe o fato”, de Carlos Heitor Cony, e “Feliz ano novo”, de Rubem Fonseca. Em 1964, Cony foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional por causa da coletânea de artigos sobre o golpe.

O jornalista ainda seria preso seis vezes por criticar o regime dos generais. Em 1976, o ministro Armando Falcão determinou a apreensão do livro de Fonseca. Afirmou que os contos eram contrários “à moral e aos bons costumes”. Na nova onda obscurantista, sobrou até para o humor. Entre os 43 proibidões de Rondônia está o “Guia Millôr da História do Brasil”, publicado em 2014. É um livro perigoso para quem não gosta que os estudantes pensem coma própria cabeça. Na antologia póstuma, Millôr Fernandes ri dos heróis de pedestal e mostra que nenhum governo merece ser levado muito a sério. “O Brasil é o Museu do Índio”, cravou o guru do Méier, em 1976. “Se Deus fosse mesmo brasileiro, a nossa moeda seria o dólar”, escreveu, em 1990. O livro apresenta a ditadura como ela era, e não como prega a extrema direita no poder .

“Quem é de oposição é porque não é de muito falar ”, ironizou Millôr em 1973, numa referência à repressão política . “Existe alguém que mereça mais o AI -5 que os que o inventaram ?”, questionou, cinco anos depois. Em 1979, o humorista resumiu a sequência de generais que vestiram a faixa sem passar pelas urnas: “Todos bem diferentes, mas com uma identidade em comum —o absoluto desprezo pelo civilis vulgaris”. Millôr também debochou dos governos democráticos. Quando Sarney assumiu no lugar de Tancredo Neves, em 1985, ele sintetizou o sentimento geral em apenas duas palavras: “Fomos bigodeados”. Embora o autor tenha morrido em 2012, o guia reúne tiradas atualíssimas. Aí vão três delas, em ordem cronológica: “Muita gente aí que fala o tempo todo contra a corrupção está apenas cuspindo no prato em que não comeu” (1976); “No Planalto, muita gente de quatro fingindo que está apenas procurando alente de contato” (1980);

 “O Brasil espera que cada bestalhão cumpra o seu dever” (1992). É difícil saber qual das frases irritou mais os censores da“nova era ”. Se tivessem pesquisado a obrade Millôr, eles poderiam ter esbarrado numa advertência famosa: “Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira pra matar”.