O Globo, n. 31600, 12/02/2020. País, p. 12

PGR recorre contra acordo de delação de Cabral

Juliana Castro


O procurador-geral da República, Augusto Aras, recorreu ontem da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin que homologou o acordo de delação premiada do ex-governador do Rio Sérgio Cabral. O acordo foi fechado pela Polícia Federal (PF) e homologado na semana passada mesmo com parecer contrário do Ministério Público Federal.

O processo corre em segredo de Justiça. No embargo de declaração, Aras pede que, caso o acordo seja mantido, a revogação das prisões preventivas decretadas contra Cabral não esteja entre os eventuais benefícios concedidos. O ex-governador está preso desde novembro de 2016 e já foi condenado em 13 processos a penas que superam 280 anos de reclusão.

A PGR diz haver “fundadas suspeitas” de que Cabral continua ocultando parte dos valores recebidos a título de propina no esquema criminoso existente quando governou o estado. Ressalta as condenações por lavagem de dinheiro contra o político em primeiro e em segunda instância e afirma que, por ter ocultado os recursos desviados, não seria possível conceder benefícios a Cabral.

Procurada, a defesa de Cabral afirmou que não vai se pronunciar. O acordo foi enviado ao STF pela PF em dezembro e trata de 20 temas. Não há benefícios penais pré-estabelecidos. Foram citados na delação dezenas de políticos, além de membros do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Em depoimento na segunda-feira ao juiz Marcelo Bretas, Cabral afirmou, pela primeira vez, que sua mulher, a advogada Adriana Ancelmo, sabia da existência de seu “caixa paralelo” formado com dinheiro desviado da administração estadual e propinas. Até então, Cabral vinha tentando isentar Adriana.

Colaboração de ex-governador deve chegar a 80 anexos

Contestada ontem pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, a delação do ex-governador do Rio Sérgio Cabral tem potencial para movimentar o meio político e Judiciário no Rio e fora do estado. Por enquanto, são duas dezenas de anexos. Os depoimentos do ex-governador, no entanto, continuarão. Estima-seque, como que ainda falta ser relatado, o número de anexos chegue a pelo menos 80.

As conversas coma Polícia Federal em busca de um possível acordo de delação ocorreram a partir de maio do ano passado. Em julho, Cabral já estava sendo ouvido por um delegado de Brasília. Para isso, ele era levado sob escolta, em muitas ocasiões, do presídio de Bangu 8, na Zona Oeste, à Superintendência da PF no Rio, no Centro do Rio. Como a lista de episódios relatados é extensa, o acordo foi assinado — e, posteriormente, homologado pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal — antes que todos os depoimentos tivessem sido colhidos. Há o prazo de 120 dias após a homologação para que todos os depoimentos complementares sejam colhidos.

As tratativas coma PF sós e consolidaram depois de longas tentativas de Cabral com o Ministério Público Federal. A força-tarefa da Lava-Jato no Rio rejeitou por diversas vezes acordos por entender que o ex governador ocultava fatos e patrimônio, incluindo outras joias que não foram apreendidas quando ele foi preso, em novembro de 2016. Os brilhantes encontrados naquela ocasião ainda devem ser avaliados para irem a leilão.

Além de desconfiar dos relatos de Cabral, outro ponto que faz a PGR pedira anulação doa cordo é o fato de que os R$ 380 milhões que Cabral promete devolver já estão bloqueados pela Justiça ou foram repatriados — caso dos US$ 110 milhões entregues pelos delatores Renato e Marcelo Chebar.

Opinião do GLOBO: curiosidade

A delação do ex-governador Sérgio Cabral é motivo de desentendimentos entre o Ministério Público e a Polícia Federal, e desperta curiosidade crescente, por ser mantida em sigilo.

Homologado pelo ministro do STF Edson Fachin, o depoimento foi prestado à PF, sob críticas do MP, que avalia que o ex-governador nada acrescenta ao que os procuradores já sabem, e ele ainda ocultaria patrimônio.

Desenvolto ao comendar a corrupção no Rio, ainda teria relatos a fazer sobre suas incursões no Judiciário, incluindo o STJ; no MP estadual e no Tribunal de Contas. Alguns nomes já circulam, mas as cifras que o ex-governador movimentou indicariam que seu campo de atuação nessas áreas teria sido mais amplo.

Casados no papel, separados na estratégia de defesa

A cumplicidade dos tempos de poder e viagens a Paris sucumbiu em apenas 31 minutos. Foi a duração do depoimento, prestado anteontem na Justiça Federal, em que o ex-governador do Rio Sérgio Cabral abandonou a estratégia de isentar de culpa a mulher, Adriana Ancelmo, e envolveu, pela primeira vez, a exprimeira-dama em seu esquema criminoso. As declarações de Cabral deterioram uma relação já conturbada diante da prisão de ambos, no fim de 2016.

Embora continuem casados no papel, o ex-governador e a advogada estão separados quando o assunto é a defesa nos processos da Lava-Jato. Desde o primeiro momento, eles foram atendidos por advogados diferentes. O depoimento de anteontem, porém, foi o ponto de inflexão que expôs caminhos opostos das duas defesas. Ao dizer ao juiz Marcelo Bretas que Adriana sabia de seu caixa paralelo, fruto de propinas pagas por empresários com contratos com o governo, e que ela “desfrutava largamente” desses recursos, Cabral quis dar credibilidade ao seu acordo de delação premiada. Outra declaração do ex-governador sobre Adriana reforçou ainda a chance de condenação da mulher em mais um processo. Cabral confirmou fatos apontados pela forçatarefa da Lava-Jato no Rio para demonstrar que o escritório de advocacia da ex-primeira-dama foi usado para lavagem de dinheiro do esquema de corrupção. Assim, além das informações fornecidas por outros delatores que já constavam no processo, a acusação do Ministério Público Federal (MPF) ganhou mais um amparo.

Adriana, por sua vez, mantém a estratégia de negar as acusações.

Em depoimentos anteriores, Cabral havia pedido desculpas a Adriana por ela ter sido alvo da Lava-Jato por sua causa, sem que estivesse envolvida. Na última audiência, como em algumas anteriores, ela não usava aliança. Embora o ex-governador tenha sido liberado recentemente para receber visita íntima, a ex-primeira-dama nunca foi visitá-lo nessa condição. Ainda assim, oficialmente, continuam juntos.

Adriana encontrava com o marido às quartas-feiras, inclusive na que antecedeu a audiência desta semana. A dúvida é se hoje, depois do ocorrido, ela vai repetir essa rotina. No dia da oitiva em que o ex-governador a envolveu pela primeira vez, os dois não se cruzaram.

Se as afirmações de anteontem não foram bem vistas pela defesa de Adriana, que divulgou nota afirmando que não se podia “levar a sério” o depoimento de Cabral, a situação deve piorar com a expectativa de que o ex-governador cite na delação mais fatos referentes ao escritório de advocacia da mulher.

A ex-primeira-dama já foi condenada em quatro ações a penas que somam 36 anos e, atualmente, está em liberdade, porém usando tornozeleira eletrônica. Cabral, por sua vez, está condenado a 282 anos.

Quando Bretas decidiu ouvir Cabral como delator, o advogado da ex-primeiradama, Alexandre Lopes, foi o primeiro a reclamar, dizendo que não havia nos autos qualquer documento que comprovasse a homologação do acordo.

— Em qual Cabral acreditar: naquele que acusa Adriana de participação ou no que a defende, dizendo que ela nunca fez parte da organização criminosa? — disse o advogado ao GLOBO.

Adriana e Cabral se conheceram na Assembleia Legislativa do Rio, em 2001, quando ela era assessora da Procuradoria-Geral da Casa, e ele, presidente. Ambos eram casados, mas logo se separaram e foram morar juntos. Casaram-se no civil três anos depois. Chegaram a se separar por um período. Eles têm dois filhos.