Título: Depositário da fé
Autor: Frei Betto
Fonte: Jornal do Brasil, 21/04/2005, Internacional / Além do fato, p. A9

Em agosto de 1984, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, concedeu a mais longa, franca e reveladora entrevista, como teólogo e pessoa, ao escritor e jornalista Vittorio Messori. O material saiu no livro A fé em crise? O cardeal Ratzinger se interroga. Bento XVI foi o teólogo de cabeceira de João Paulo II. Só vaticanistas não católicos poderiam e podem achar que a doutrina da fé da Igreja muda ao sabor dos ¿ismos¿, e será ainda mais ¿conservadora¿. Parecem desconhecer que a Igreja é aberta a todos. Mas, claro, só para ¿todos¿ que aceitam seus dogmas, constituições apostólicas e encíclicas papais.

¿ Não são os cristãos que se opõem ao mundo ¿ dizia Ratzinger, há quase 21 anos. É o mundo que se opõe a eles quando é proclamada a verdade sobre Deus, sobre Cristo e sobre o homem. Depois da fase das aberturas indiscriminadas, é tempo de o cristão reencontrar a consciência de pertencer a uma minoria e de estar em oposição ao que é óbvio e natural para aquilo que o Novo Testamento chama o ¿espírito mundano¿. É tempo de se reencontrar a coragem do anticonformismo, a capacidade de se opor, de denunciar muitas tendências da cultura que nos cerca, renunciando a certa eufórica solidariedade pós-conciliar".

O papado de João Paulo II foi pródigo de documentos, discursos e homilias na linha que é a mesma de seu sucessor. Em 1984, Ratzinger já criticava a tendência de ¿muitos católicos de abrir-se à mentalidade moderna dominante, sem filtros nem freios, pondo em discussão, ao mesmo tempo, as bases do depositum fidei (depósito da fé) que, para muitos, não eram claras¿.

Quem conhece sabe que títulos pontifícios contêm as duas primeiras palavras de seus textos (Rerum novarum , Gaudium et spes, etc). Bento XVI usou muito, em 1984, a expressão depositum fidei. Não por acaso, o termo doutrinário fundamental de João Paulo II foi a constituição Fidei depositum , com o Catecismo da Igreja. É datado de 11 de outubro de 1992, trinta anos depois da abertura do Concílio Vaticano II. A primeira frase é a seguinte: ¿Guardar o depósito da fé é missão que o Senhor confiou á sua Igreja e que ela cumpre em todos os tempos¿.

O Catecismo é um livro de mais de 600 páginas, com 2.865 itens absolutamente desconhecidos pela grande maioria da maior população de católicos do mundo.

Se assim não fosse, não se estaria a afirmar com a freqüência que a Igreja Católica estigmatiza, por exemplo, os homossexuais. Embora o Catecismo não aceite a tese ¿politicamente correta¿ da ¿opção sexual¿, e considera que ¿um número não negligenciável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais inatas¿, está lá, na página 531 da edição oficial em português: ¿ (Os homossexuais) Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar a vontade de Deus na sua vida e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar por causa da sua condição¿.