O Globo, n. 31597, 09/02/2020. Economia, p. 33

Apagão financeiro

Pedro Capetti


Quem procura por Belmiro Braga, cidade de 3,5 mil habitantes na Zona da Mata mineira, na internet vê no mapa a sinalização de um banco. A realidade é bem diferente. Em vez de vidros, porta giratória e caixas eletrônicos, apenas uma divisória separa a “agência” de um bar e mercearia. Trata-se, na verdade, de um posto de atendimento correspondente bancário, o único local além da lotérica onde os cidadãos podem pagar contas e fazer saques.

Quando tem dinheiro. Belmiro Braga é uma das 427 cidades que entraram para o grupo das que não têm sequer uma agência bancária desde 2013, quando a cobertura atingiu seu auge. Levantamento feito pelo Globo em dados do Banco Central revela que, no fim de 2019, dois em cada cinco municípios do país estavam nessa situação. Essa proporção vem crescendo nos últimos seis anos. São cerca de 17 milhões de brasileiros, em 2.328 cidades, que precisam viajar para as vizinhas se quiserem abrir uma conta, tomar empréstimos ou até mesmo fazer saques. Em 2013, eram 1.901 municípios nessa situação. Para analistas, a redução da rede de agências físicas é um obstáculo à inclusão de mais brasileiros no sistema bancário. A digitalização ajuda a preencher essa lacuna, mas ainda não é acessível para muitos, principalmente os mais velhos e mais pobres. Em seis anos, 2.414 agências foram fechadas em todo o país com os cortes de custos dos grandes bancos, inclusive os estatais, para enfrentar acrescente concorrência digital.

O aumento dos assaltos a agências no interior também contribuiu para esse movimento. Desde 2016, quando a única agência remanescente de Belmiro Braga, do Bradesco, fechou, acidade passou a conviver com poucos serviços bancários. Não há caixas eletrônicos e, como fim do Banco Postal nos Correios, os moradores só podem contar com o posto de atendimento improvisado ao lado doba recoma lotérica, usada principalmente para o saque de benefícios pagos por Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.

De olho no carro-forte

Em muitas cidades, as agências deram espaço a esses estabelecimentos, chamados correspondentes bancários. Os serviços são limitados, e nem sempre eles são abastecidos com dinheiro vivo. Em Belmiro Braga, achegada do carro forte — que só passa uma vez por mês, perto do dia do pagamento da prefeitura — é aguardada com ansiedade pela chance de conseguir sacar salários e aposentadorias.

—O carro-forte é como um alerta. As pessoas sabem quando chega e correm para sacar todo o dinheiro para não ficar sem — diz Juliana Narciso, 32 anos, funcionária da lotérica. O “apagão bancário” faz dos boletos a salvação dos clientes de Caixa, Banco do Brasil e Bradesco, os únicos com chance de ter algum serviço bancário na cidade, ainda que limitado. Quando alguém chega com um papel na mão para pagamento em espécie, outro consegue sair dali com algumas cédulas no bolso. Como o dinheiro é todo sacado de uma vez na passagem mensal do carro-forte, a lotérica e o posto ao lado do bar dependem dos pagamentos das contas para formar algum capital de giro para os saques. Assim, quem chega para sacar muitas vezes tem de esperar entrar dinheiro suficiente.

O comerciante João Martins: sem agência, comércio sofre no caixa. O que na cidade grande é resolvido em segundos no caixa eletrônico, pode consumir horas e até dias de espera em Belmiro Braga.

—Todo mês venho aqui e é sempre a mesma coisa. Já houve dia sem que fiquei o dia todo sem conseguir tirar dinheiro — conta a aposentada Marina da Cruz, de 86 anos, que só conseguiu sacar R$ 200 no correspondente bancário do Bradesco após cinco horas de espera do lado de fora, na chuva, na última quinta-feira, véspera do “dia do carro-forte.” Também na fila, a doméstica Ana Maria da Silva, de 53 anos, se queixa de perder trabalho. — É um dia perdido de faxina enquanto espero. Antes (quando havia agência) era mais rápido e fácil—lamentou,após quatro horas de espera para tirar o salário do filho. Em nota, o Bradesco disse que “vem ajustando gradualmente sua rede, preservando a capacidade de atendimento” e que, no caso de desequilíbrio de fluxo de caixa, o cliente “pode utilizar seu cartão.”

Desbancarizados

O fechamento de agências prejudica o aumento da bancarização, uma das metas do Banco Central. Em 2019, o Brasil ainda tinha 45 milhões sem conta bancária, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva. Destes, 61% estavam fora dos grandes centros. A falta de atendimento presencial leva pessoas a desistirem de ter conta em banco ou virarem “sub-bancarizados”: sacam o salário todo no fim do mês e não usam nenhum outro serviço bancário, como o crédito.

— É natural que pessoas não queiram depositar o dinheiro num lugar onde não sabem para quem reclamar quando houver um problema. As redes físicas têm essa vantagem, ainda mais no interior, onde o gerente do banco é quase uma autoridade da cidade — diz Renato Meirelles, presidente do Locomotiva, que vê dificuldade maior para as classes C, D e E. Em Belmiro Braga, muitos percorrem 40 quilômetros até Juiz de Fora, principal cidade da região, para fazer saques. Aproveitam e fazem compras lá mesmo. Isso prejudica os comerciantes locais, que também precisam pegar a estrada para obter crédito ou até mesmo compensar um cheque, ainda muito usado no interior.

— Se o banco voltasse para cá, ajudaria no movimento. Quando tinha agência aqui, ajudava bem. Hoje, há dias em que não vendo nada. Estou querendo parar — diz João Roberto dos Reis Martins, de 68 anos, proprietário de uma loja de material de construção que acaba de colocar à venda. João Batista Ferreira, secretário de Governo de Belmiro Braga, diz que a falta de segurança e de dinamismo econômico reduz o interesse dos bancos de se instalarem ali: — Já tentei negociar, mas os bancos alegam que não vale a pena.

Mercado para fintechs

A Febraban, federação que reúne os grandes bancos do país, diz que a digitalização é uma das maneiras de amenizar os efeitos do fechamento das agências. Hoje, segundo pesquisa da instituição, 60% das transações bancárias são feitas por celular ou computador. Para Flávio Calife, economista da Boa Vista SCPC e autor de um estudo sobre o tema, a digitalização pode não funcionar nas pequenas cidades por falhas na infraestrutura. — Um acesso menor à internet pode gerar redução do acesso ao crédito, por exemplo, deixando parte da população ainda mais desassistida. Em Belmiro Braga, só há sinal de duas operadoras de telefonia. A cobertura falha prejudica as vendas com cartões no comércio, diz Mariana Neder, de 24 anos, funcionária de uma padaria. Segundo ela, apenas 10% dos pagamentos ali são com cartão:

— Quando chove, só Jesus. Acaba sinal de internet, telefone e luz, e não conseguimos trabalhar com maquininha. Apesar das limitações, a tecnologia é hoje uma aliada dos comerciantes em regiões sem bancos. Além da popularização das maquininhas, a facilidade de resolver serviços pelo computador faz com que comerciantes economizem tempo e dinheiro no deslocamento e consigam manter relacionamento com as instituições financeiras.

Esse mercado é visto como uma oportunidade pelas fintechs,as start-ups financeiras. O Nubank, por exemplo, diz ter clientes em todos os 5.570 municípios brasileiros. Segundo Vitor Olivier, diretor de Consumo e Operações da fintech, 44% dos clientes de contas digitais optaram pelo serviço para não precisar ir ao banco. Já a Saxperto, que oferece saques em varejistas, tem regiões com rede bancária limitada como alvos. Na avaliação de Ivan Nacsa, sócio da área financeira da consultoria Bip, a expansão para o interior será a tendência das fintechs nos próximos cinco anos:

— À medida que for estagnando o número de clientes nas grandes capitais, será natural um movimento de expansão para o interior. É um trabalho a longo prazo.