O Globo, n. 31597, 09/02/2020. Sociedade, p. 51
Velhas doenças ainda ameaçam mais do que coronavírus
Ana Lucia Azevedo
Célia Costa
Constança Tatsch
A médica Patrícia Rosseti chega às 8h no Centro Municipal de Saúde (CMS) Píndaro de Carvalho Rodrigues, na Gávea, Zona Sul do Rio, e com mais duas pessoas atende a cerca de 50 pacientes todos os dias, muitos com dengue. Desde o início do ano, o CMS também realiza, pelo menos uma vez por dia, bloqueios vacinais contra o sarampo, quando pessoas do entorno de um paciente devem ser imunizadas.
Mas, nos corredores, conta a médica, os pacientes já se preocupam mais com o coronavírus:
— Ficamos muito frustrados. Parece que você orienta as pessoas mas tudo fica do mesmo jeito — diz, em referência aos cuidados necessários para se combater o mosquito Aedes aegypti ou manter a carteira de vacinação em dia.
— Talvez o governo precisasse falar mais, incrementar as campanhas, divulgar mais os números. Até para nós fica difícil saber qual a realidade dos casos aqui no Rio, por exemplo.
O pânico global em relação ao novo coronavírus pode ser grande, mas, para o Brasil, pelo menos nesse momento, muito maior é a ameaça de velhas doenças, garantem especialistas. Os vírus da dengue, da chicungunha, da febre amarela e do sarampo são aqueles que o brasileiro realmente deveria temer e contra os quais se proteger.
— Vejo com pessimismo o cenário para dengue e chicungunha, apesar dos esforços do Ministério da Saúde. Enquanto não tiver saneamento básico, as doenças do Aedes aegypti vão nos acometer — destaca o virologista Pedro Vasconcelos, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical,que conclui:
— Haverá um ano com mais casos, outros com menos, mas a tendência de crescimento será mantida. Marzia Puccioni-Sohler, professora da UFRJ e da UniRio, lembra que o mosquito prefere água suja, mas, se encontrar oportunidade dentro das casas, vai infestá-las também. E não adianta cuidar da casa e ter esgoto a céu aberto na porta.
A chicungunha é uma doença incapacitante, causa limitações físicas, impede muitas pessoas de trabalhar. Embora o vírus seja menos comum, a parcela dos infectados que adoece é muito maior que a da dengue, por exemplo. Estima se que 70% dos infectados desenvolvam sintomas,que nunca são brandos e podem se prolongar por meses, às vezes por anos. E 16% dos doentes podem apresentar complicações neurológicas. Já a dengue pode levar a doenças autoimune. — Como toda novidade, o coronavírus desperta curiosidade e prende a atenção. Mas, para o Brasil, agora, problema mesmo são as nossas doenças conhecidas, que são graves— diz Marzia.
Para Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em saúde pública e colunista do Globo, o coronavírus é “um desafio que se soma, e as estruturas da saúde já estão fragilizadas”. Segundo ela, para combater a dengue, por exemplo, seria necessário fazer um conjunto de ações, incluindo inquéritos sorológicos (pesquisa com uma amostra da população para saber se já teve dengue e qual tipo), além de desenvolver uma vacina, processo em que o Brasil “não está na vanguarda” pela “descontinuidade de investimentos”.
— O coronavírus vai fazer sombra [às outras doenças] porque o mundo inteiro está apavorado e é uma ameaça que vem de fora, enquanto a dengue nos é familiar — afirma.
— Na realidade, é quase uma competição de mau gosto entre os vírus.
Vacinas
Apesar das campanhas, o Brasil ainda não atingiu a cobertura vacinal adequada contra a febre amarela, e o vírus tem avançado para a Região Sul. Vasconcelos observa que, enquanto não tivermos a cobertura vacinal superior a 90% da população, haverá risco de o vírus voltar a se urbanizar. O sarampo, como a febre amarela, não precisaria mais existir se as pessoas se vacinassem, acrescenta:
— Quem não se vacinou e tem medo de coronavírus deveria tomar as vacinas disponíveis e se livrar de perigos bem mais imediatos. São dessas doenças virais que temos que ter mais medo no Brasil — diz. Rodrigo Brindeiro, professor do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),explica que a diminuição dos casos de chicungunha neste início de ano não deve soar como sinal de alívio. Embora com menos casos do que o mês passado, a dengue, em comparação com as primeiras cinco semanas de 2019, tem alta de 71% no país.
—E o número de casos deve aumentar muito em abril e maio, quando teremos calor e menos chuva. A chegada da dengue 2 preocupa porque parte da população mais jovem nunca foi exposta ao vírus e não tem imunidade. Já pessoas mais velhas, expostas aos vírus 1 e 3, correm risco de desenvolver a forma hemorrágica,
“Na realidade, é quase uma competição de mau gosto entre os vírus” _
Ligia Bahia, professora da UFRJ e especialista em saúde pública
“Quem não se vacinou e tem medo de coronavírus, deveria tomar vacina contra o sarampo e febre amarela e se livrar de perigos mais imediatos” _
Pedro Vasconcelos, pesquisador que mais descobriu novos vírus no Brasil