Título: Crônica de uma queda anunciada
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 21/04/2005, Internacional, p. A8

Nos últimos meses, o Equador experimentou uma crise política que comprometia não somente a legitimidade do presidente Lucio Gutiérrez, destituído ontem pelo Congresso, mas também a sobrevivência das instituições democráticas do país. O quadro equatoriano se insere em um contexto mais amplo de instabilidade político-institucional na América Andina, que transcende a discussão sobre a queda de Gutiérrez. Sob este ângulo, a destituição do presidente e as constantes ameaças perpetradas contra as instituições apresentam-se como uma manifestação local de um problema regional. O ex-coronel Lucio Gutiérrez chegou à Presidência pela via eleitoral em 2003, como candidato da oposição, alguns anos depois de participar de um golpe de Estado que depôs o então presidente Jamil Mahuad, em 2000, o que lhe custou seis meses de prisão. Lançado candidato pelo pequeno partido Sociedade Patriótica (SP), Gutiérrez foi eleito com forte apoio dos movimentos populares, incluídas as organizações indígenas, que representam 90% da população, e da esquerda política. Sua plataforma eleitoral incluía o combate à corrupção e à agenda política liberal implementada no Equador nos anos 1990. Uma vez no governo, a distância entre as promessas de campanha e a manutenção das políticas liberais levou à perda do apoio popular que o conduziu ao Palácio de Carandolet. Pouco a pouco, o presidente viu-se isolado e mergulhou em uma crise de legitimidade.

De certa forma, Gutiérrez foi vítima de suas próprias críticas, na medida em que ignorou a necessidade de atender as demandas dos grupos que o apoiaram na escalada ao poder, manifestadas sucessivamente pela opinião pública. Exatamente aqueles grupos que o apoiaram figuravam, nos últimos capítulos da crise, como líderes da mobilização popular que paralisou o Equador nos últimos meses.

Os eventos mais recentes fazem parte de uma trajetória de desentendimentos políticos que tiveram início em nove de dezembro de 2004, quando o Poder Executivo conseguiu mobilizar a maioria parlamentar para aprovar uma resolução que destituiu 27 dos 31 magistrados da Corte Suprema de Justiça (CSJ). Desde janeiro, manifestações contrárias ao governo questionaram a legitimidade da resolução e exigiram a dissolução da Corte e a renúncia do presidente.

As manifestações fortaleceram-se nas últimas semanas, sobretudo a partir de uma decisão do presidente da CSJ, Guillermo Castro, que no início de abril anulou as ações judiciais existentes e garantiu o retorno de dois ex-presidentes processados por corrupção, Abdulá Bucaram e Gustavo Noboa, que gozavam de asilo político no exterior. Em um período que antecede as eleições presidenciais previstas para 2006, o retorno dos ex-presidentes alterou os cálculos eleitorais das forças políticas e gerou uma onda de protestos da sociedade civil.

Na última semana, o governo viu-se cada vez mais encurralado pela onda de protestos populares. Diante da situação, o presidente decretou estado de emergência na capital e dissolveu a CSJ. Em vez de uma desmobilização dos protestos, o decreto surtiu efeito contrário. Liderado pelos governadores, prefeitos e partidos de oposição, o povo ignorou a restrição de direitos e permaneceu nas ruas para exigir a renúncia de Gutiérrez. Sob pressão, o presidente foi obrigado a recuar na tarde de sábado e revogou a medida menos de 24 horas depois do anúncio. Ao bater em retirada, Gutiérrez dava sinais de que não resistiria às pressões populares, apesar de afirmar de forma reiterada que não deixaria a Presidência.

Enquanto o país está mergulhado em uma crise política, a economia equatoriana segue uma trajetória positiva. A despeito da persistência dos problemas estruturais, os dados conjunturais são favoráveis nas previsões para este ano, pois o governo prevê que a meta de inflação de menos de 2% deve ser alcançada, o Produto Interno Bruto crescerá cerca de 3,9% e o elevado preço do petróleo vem favorecendo o país, que é um dos produtores da região. Assim, o momento atual não apresenta um quadro de crise econômica, o que parece demonstrar que tal situação não é condição necessária para gerar um impasse político-institucional. Ao mesmo tempo, demonstra que um bom desempenho econômico não é suficiente para garantir a manutenção e o bom funcionamento das instituições democráticas.

Apesar da queda do presidente, a crise política permanece e a sua continuidade põe em xeque as próprias instituições democráticas equatorianas, tendo em vista que se tratava do sexto presidente no comando do país desde 1992. A despeito de todas as singularidades do quadro político equatoriano, seus contornos não o afastam da imagem mais geral representada pela situação atual da região andina como um todo, a de uma crise institucional generalizada. A consolidação das instituições democráticas está longe de ser atingida no Equador e nos demais países da América Andina.