Título: O orgulho de ser médico agoniza
Autor: Luiz Orlando Carneiro
Fonte: Jornal do Brasil, 21/04/2005, Rio, p. A15

Em minhas visitas diárias aos hospitais públicos tenho me deparado com muitos profissionais de saúde, alguns médicos como eu. Representantes de várias gerações invariavelmente me perguntam quando irá cicatrizar a ferida, depois de passada esta tempestade de desmandos que estamos presenciando na saúde pública do Rio de Janeiro. São graves feridas de cunho pessoal, profissional e ético em representantes das mais diversas categorias da saúde, que não mereciam passar por toda esta humilhação e impotência, decorrentes da inércia de gestores em todos os níveis de governo. Respeito, honra e competência foram colocados em xeque por uma guerra sórdida e eleitoreira, onde os personagens principais sequer conhecem o peso de um estetoscópio ou a cor de uma tala gessada. Foi ferida a integridade de profissionais que se prepararam durante uma vida inteira de estudo, caro e árduo, para exercerem o mais nobre dos ofícios que é o de curar e salvar a vida humana.

São pessoas que perderam sua juventude debruçadas em pilhas de livros durante longas e intermináveis madrugadas, sonhando com a tão desejada formatura. Inúmeros profissionais abdicaram de seus próprios consultórios para se dedicar exclusivamente ao serviço público, onde passaram a vida atendendo a população excluída de um plano de saúde. Outros que dedicaram sua existência ao ensino, moldando vocações, incentivando raciocínios e transformando ideais em realizações.

A nobreza da profissão pede a todos estes profissionais o mais frio domínio dos corações, para que o embargo da voz ou um franzir de cenhos não semeiem no espírito dos pacientes dúvidas e opressão. E o que falar da amargura de saber que uma vida poderia ter sido salva se tivesse o centro cirúrgico funcionando, o leito de UTI disponível, o antibiótico necessário ou o respirador na hora certa? Inocentes morreram por falta de estrutura básica para se manter aberta qualquer unidade.

Por causa dessas mortes, o orgulho de ser médico agoniza. A incompetência e a perversidade contratual serviram de palco para atrocidades nunca antes vistas no serviço público de saúde, como a falta de analgésicos na emergência do Miguel Couto ou o uso de fragmentos de uma caixa de papelão servindo como colar cervical a um traumatizado no Souza Aguiar. Infiltrações em centros cirúrgicos e em unidades de terapia intensiva também infiltraram a alma de médicos e enfermeiros, trazendo o medo e a insegurança aos plantões.

O covarde desabastecimento de insumos, medicamentos e materiais médico-cirúrgicos não teve precedentes nem na época da falência da prefeitura. Entretanto, ainda nos orgulhamos do não menos importante cadáver desconhecido, encharcado de formol, e que muito nos ajudou nos tempos de estudantes; ainda lembramos com carinho do olhar confuso e perdido do frágil indigente, de vestes e alma em trapos, onde os problemas contundentes gritavam por solução. Ainda nos emocionamos toda vez que alguém grita que um coração parado voltou a bater, teimando em viver. Os médicos só querem condições para que o juramento de Hipócrates possa ser cumprido com decência e dignidade. Por isso, os profissionais de saúde do Rio de Janeiro nada têm de se envergonhar. Vereador pelo PP e ex- coordenador da Emergência do Hospital Municipal Miguel Couto