Título: O legado de João Paulo II
Autor: D. Eugenio Sales
Fonte: Jornal do Brasil, 11/05/2005, Outras Opiniões, p. A11

A morte de João Paulo II, o Grande, e o início do pontificado de seu sucessor, papa Bento XVI, nos oferecem excelente oportunidade para análise de seu pontificado e os frutos por ele proporcionados à Igreja de Cristo e aos homens de boa vontade.

João Paulo II foi um papa de grandes contrastes. Resistiu à perseguição nazista e ao terror comunista. Após ter trabalhado em uma fábrica química, entrou em um seminário clandestino. Entretanto, nada dessa dureza o caracterizou como papa. Ao contrário, ele era a própria bondade, a delicadeza com cada pessoa, especialmente com as pequenas e doentes. Contudo, não era fraco quando devia cumprir seu dever. Amava a literatura, a poesia, o teatro. Percebia com grande sensibilidade a índole dos povos e de seus diferentes países. No Rio ele exaltou a beleza da cidade, ''a admirável arquitetura de Deus''.

Duas coisas marcam singularmente seu pontificado: uma abertura à ciência, à cultura, a tudo o que é humano. Conheceu a realidade das injustiças, da opulência de um lado e, de outro, a mais degradante e humilhante pobreza. Em suas encíclicas sobre temas sociais, como Laborem Exercens, Sollicitudo Rei Socialis, Centesimus Annus, o papa condena a práxis do liberalismo capitalista ''cujo conteúdo reduz-se ao amor de si mesmo, até chegar ao desprezo de Deus e do próximo, que conduz à afirmação ilimitada do interesse próprio, sem obedecer a qualquer dever de justiça'' (CA 17). De outro lado, não deixa de afirmar que o marxismo é perverso, por princípio anti-humano. Mas seria insensatez imaginar que, com a implosão dos regimes comunistas do Leste europeu, o capitalismo constituísse a única alternativa possível (CA 42).

Os Sínodos dos Bispos de todos os Continentes e as respectivas Cartas Apostólicas confirmam sua abertura ao mundo e sua sensibilidade para com a extrema gravidade da história de hoje. Por outra parte, este papa, totalmente aberto ao mundo e aos problemas cruciantes da humanidade, manifesta qual é a verdadeira fonte de sua opção, de sua inspiração. Dizem os que mais viviam perto dele que cada dia ele passava várias horas em silenciosa adoração; eu mesmo o constatei algumas vezes. O tema absolutamente grande de sua vida era Deus. Por isso ele dedicou três encíclicas às Três Pessoas Divinas: ao Pai, Dives in Misericórdia; ao Filho: Redemptor Hominis e ao Espírito Santo: Dominum et Vivificantem.

Com que radicalidade ele amava e adorava Deus, procurava servir unicamente à causa do Senhor. Mostrava-se assim, por exemplo, quando, em meio a lutas pela identidade e liberdade de todos na América Latina, ele colocava toda inculturação sob o valor absoluto de Deus: a cultura com seus inestimáveis valores não é a medida para a interpretação do Evangelho, mas o evangelho de Jesus Cristo é a medida para todas as culturas (cf. Puebla, 389s).

Três outros temas de eminente importância são a família, a mulher e a juventude. Sobre a família, o papa avaliou com grande perspicácia as incalculáveis ameaças por parte da fragilidade humana e do totalitarismo das ideologias que querem equiparar à família qualquer forma de convivência, mesmo sem nenhum compromisso nem entre os dois, nem com os eventuais filhos. Familiaris Consortio e a ''Carta do papa às famílias'' são os grandes documentos, além das inumeráveis e importantes homilias proferidas nos primeiros anos do pontificado, sobre a antropologia e teologia do corpo, do amor e do sexo. A mulher é um outro grande tema. Se ela não recuperar sua dignidade original de imagem de Deus, de símbolo da Misericórdia do Senhor e, com isto, chegar ao verdadeiro feminismo, a humanidade toda será prejudicada. A juventude: a atração deste homem ancião exercida sobre os jovens é algo inimaginável. Ele lhes dedicava uma grande confiança, em vista do futuro da humanidade.

Quanto à cultura, filosofia, teologia, finalmente, quanto à verdade acerca da pessoa humana e da sua real dignidade, o papa tinha uma autêntica paixão como demonstra a Veritatis Splendor (6 de agosto de 1993) e a Fides et Ratio (14 de setembro de 1998). Sua espiritualidade cristocêntrica marca todos os seus documentos e toda a sua ação, mesmo em seu singular amor a Maria Santíssima, que nos deu o Cristo e é caminho para o Coração de Jesus.

Os últimos momentos da vida terrena de João Paulo II e seu ingresso na vida eterna foram envolvidos por algo de extraordinário na história da humanidade. Em sua agonia, foi acompanhado por uma imensa multidão, serena, orante. Não se tem memória de tão grandiosa manifestação de apreço. Em meio a um mundo dividido e vítima do terrorismo e tantos outros males, eis que surge algo de novo, que consegue unir em torno de um homem do qual Deus se serviu para pregar a esse mundo a concórdia e a paz. Em torno de seus restos mortais, milhões de pessoas desde os poderosos da terra - 172 reis, rainhas, presidentes de países, primeiros-ministros, representantes dos povos participaram das últimas homenagens a quem serviu à causa da paz, lutou contra a miséria, as injustiças, nem sempre ouvido, jamais deixou de apelar em favor dos pobres e injustiçados. Pastor da Igreja Católica, ao pregar os valores espirituais em uma época marcada pela descrença serviu ao fortalecimento de todas as crenças religiosas. A imprensa mostrou nesses dias, uma significativa fotografia por ocasião das exéquias. Em frente ao caixão mortuário, o presidente dos Estados Unidos e dois ex-presidentes, ajoelhados diante de um corpo inerte. A presença ativa de uma juventude que chorava, na Praça de São Pedro, parecia dizer a outra juventude fracassada, que ali estava a solução aos problemas que tanto inquietam os jovens. Não foi a vitória da morte que ali era exibida, mas a proclamação da força da vida. Aos propugnadores de uma sociedade paganizada, mostra que Cristo Jesus e seus ensinamentos são a salvação para nossos males. Durante muito tempo, esse episódio de vida que vence a morte será estudado e lições serão ensinadas a este mundo tão contraditório.

João Paulo II morreu, mas vive nos ensinamentos que legou aos fiéis. No céu, junto ao trono de Jesus, a quem serviu na terra, ajuda-nos, com seus ensinamentos, a viver conforme a doutrina do Senhor. O papa Bento XVI, felizmente eleito, será uma garantia da continuidade da extraordinária missão pastoral do Papa João Paulo II.