Título: Asilo ou resgate de parceiro?
Autor: Milton Temer
Fonte: Jornal do Brasil, 26/04/2005, Outras Opiniões, p. A13

Nada de surpreendente. O empenho do presidente Lula em se atolar nesse acerto de contas do povo equatoriano com seu chefe de Estado deposto, Lucio Gutiérrez, é até natural. São ambos políticos que ascenderam ao governo no contraponto da tradição política degradada de seus países. E que, sentados na cadeira presidencial, optaram por uma meia-trava. Romperam com parte expressiva de suas bases sociais, buscando alianças de poder exatamente com as forças políticas que haviam derrotado. Em nome da ''governabilidade'', transformaram-se nos mais bem comportados conservadores dos modelos macroeconômicos que haviam prometido demolir.

Freud, portanto, explica a precipitada reação que colocou nosso embaixador em Quito numa situação, minimamente, constrangedora. Mas o Planalto não precisava exagerar. Para que deslocar um avião da FAB, numa operação destinada a resgatar - mais do que a garantir asilo - alguém apontado como autoritário, conivente com a corrupção, e traidor de promessas que o levaram ao poder? Para terminar alvo de manifestações de protesto em frente à bloqueada representação diplomática?

Os que foram banidos por regimes ditatoriais latino-americanos das décadas de 70 e 80 conhecem bem o problema. Na condição de asilados, embarcaram em aviões de carreira, com proteção da ONU. Mas não há memória de avião sueco, francês, argelino - lembrando de apenas alguns paises hospedeiros -, aterrissando no continente, para retirar democratas perseguidos.

De qualquer forma, é deplorável o fim, nestes termos, da curta carreira pública de Gutiérrez. Afinal, despontara liderando uma insurreição promovida por comunidades indígenas e grupos de esquerda contra o governo corrupto de Bucaran. Com isso se credenciou a uma caminhada semelhante à que, no Brasil, levou Lula à Presidência da República. Envolvido numa aura de esperança, era visto como alguém capaz de transformar a realidade de subserviência ao grande capital financeiro em um regime soberano e de justiça social. No poder, bandeou-se para o lado dos que derrotara.

Se a economia havia sido dolarizada pelo governo batido nas urnas, que se mantivesse como tal. Se havia total submissão aos paradigmas predatórios do Fundo Monetário Internacional, que ninguém se preocupasse. A relação não se alteraria. Assim como no Brasil de Lula, ''cumprir compromissos'' com a banca internacional virou questão de princípio. Era a continuidade, em nome da ''governabilidade'', repetimos, favorecendo os portadores de títulos da dívida pública.

Se isto lembra ao paciente leitor alguma semelhança com nosso contexto recente, não se trata de mera coincidência. É verdade que, por aqui, não chegamos ao absurdo de ceder bases militares aos EUA. No mais, trata-se de pura cópia da guinada doutrinária petista.

Qual o desdobramento, para nós, dessa melodia? Difícil prever, principalmente se considerarmos a bizarra observação do ministro Palocci, quase simultânea aos eventos de rua no Equador: ''os brasileiros têm que aprender a conviver com o sucesso''. Afinal, a que sucesso se refere Palocci? O das exportações do agronegócio? Ou o das montadoras multinacionais de veículos, que buscam sua competitividade na exploração da mão-de-obra especializada que o Brasil oferece a preços bem mais módicos do que seus países de origem?

Pura falácia. Estão aí os dados recentes da Organização Mundial do Comércio para informar que, a despeito de estarmos batendo recordes nacionais de exportação, não melhoramos um pontinho sequer no ranking dos 30 países com maior participação no comércio internacional. Continuamos no mesmo lugar. Ou seja, apenas surfamos na onda mundial; tão perto dos mais bem sucedidos, quanto dos completamente fracassados. Como, aliás, já havia ocorrido no ufanismo em torno do medíocre crescimento do PIB. Nossos 5,2%, sobre um quase zero de 2003, corresponderam exatamente à média mundial. Bem abaixo, portanto, de grande parte dos emergentes. Principalmente de nossa ''inconveniente'' vizinha, a Argentina, que lascou um 8 sobre 8.

Que o Equador sirva de alarme à esquerda petista, ainda apegada à ''disputa por dentro''. Num eventual tropeço, estarão todos no mesmo barco.