Título: Polêmica na África
Autor: Deonísio da Silva
Fonte: Jornal do Brasil, 26/04/2005, Outras Opiniões, p. A13

Em sua mais recente visita à África, o presidente Lula assumiu um remorso, não apenas tardio, mas equivocado, pois até para arrependimentos são fixadas determinadas condições. Por exemplo: para escapar ao Inferno, é preciso arrepender-se antes de morrer!

Seu pedido de perdão foi, no mínimo, controverso e pode ser comparado ao que responderam rabinos exegetas quando lhes perguntaram se os judeus poderiam perdoar os nazistas: as vítimas não podem mais ser consultadas porque estão mortas. Então, não há resposta. Pois quem poderia perdoar ou não seriam elas!

Restou ao presidente o consolo de ter errado em boa companhia. Antes dele, grandes intelectuais cometeram equívocos semelhantes, como é o caso do poeta Castro Alves, um dos grandes responsáveis pelo mito de que homens livres eram caçados impiedosamente na África por figuras brancas hediondas, personificações do Mal em seu estado bruto, que lhes roubavam a liberdade, conduzindo-os à Terra de Todos os Males, o Brasil, onde viveriam escravos pelo resto de seus dias.

''Ontem, simples, fortes, bravos,/ Hoje míseros escravos, sem ar, sem luz, sem razão'', diz ele no Navio Negreiro, acrescentando bela metáfora bíblica, ao comparar as mães africanas a Agar, a escrava de Abrahão, primeiramente aceita pela esposa Sara para compensar a esterilidade que a afligia e depois banida para o deserto porque seu filho Ismael debocha de Isaac, o rebento que Sara teve depois que o Senhor a curou da esterilidade.

Não deve ter sido nem a primeira nem a última vez que mães pagaram por brincadeiras de filhos. ''São mulheres desgraçadas, /Como Agar o foi também./ Que sedentas, alquebradas, / De longe... bem longe vêm... / Trazendo com tíbios passos, / Filhos e algemas nos braços, / N'alma - lágrimas e fel... / Como Agar sofrendo tanto,/ Que nem o leite de pranto/ Têm que dar para Ismael''.

No episódio bíblico, Abrahão, ao expulsar mãe e filho da tenda, dá-lhe pão e um odre de água. Acabando a água, Agar se afasta ''um tiro de flecha'' para não ver o filho morrer de sede e começa a chorar em altos brados. Surge, então, um anjo, que lhe informa - anjo é mensageiro - terem seus gritos sido ouvidos no Céu. Deus abriu-lhe os olhos, fazendo-a ver um poço onde encontrou água para matar a sede do filho. O narrador bíblico não diz que a mãe também bebeu: ''ela encheu o odre de água e deu de beber ao menino''. Interessante o detalhe: subentende-se que o poço estava ali, ela é que não via.

Castro Alves errou feio também em geopolítica. Os leitores podem aprender poesia e compaixão, mas devem saber que ele faltou às aulas de geografia. Desertos e rios estão deslocados miseravelmente.

A História documentou outras realidades na África. Os mercadores brasileiros que enchiam seus navios de negros já o recebiam presos, algemados, previamente escravizados e prontos para entrega nos portos onde eram embarcados. Eram pessoas de tribos vencidas e, como sempre, os vencedores tinham sobre elas todos os direitos, inclusive o de escravizá-las e vendê-las.

Precisamos estudar mais a África portuguesa. Boas indicações de leitura são livros como A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700, e Francisco Félix de Souza, mercador de escravos (Editora Nova Fronteira/Uerj), de Alberto da Costa e Silva, que teria socorrido o presidente Lula com prosa de saberes e sabores admiravelmente combinados, sobre questões africanas que nos dizem respeito muito de perto.