Título: A cidade invisível
Autor: Julio Ludemir
Fonte: Jornal do Brasil, 27/04/2005, Outras Opiniões, p. A11
Um dos mais importantes estudos de que se tem conhecimento sobre a violência no Rio de Janeiro é o livro Cidade partida, do jornalista Zuenir Ventura. Mas tão importante quanto o conteúdo da obra foi o conceito que o título imprimiu à cidade, que desde então deixou de ser a Cidade Maravilhosa cantada em verso e prosa na contagiante marchinha de André Filho. Recorremos a ele para entender e explicar o gigantesco fosso que separa os morros da cidade do chamado asfalto. Do lado de cá da Cidade Partida, civilização e democracia. Do lado de lá, a barbárie à qual o nosso povo foi condenado principalmente depois que o tráfico de drogas se encastelou nas favelas.
O revelador e duradouro conceito de Zuenir Ventura, porém, não parece ser suficiente para traduzir as dramáticas notícias que nos chegam sob a rubrica de Chacina da Baixada. E com certeza a sua limitação não se deve a uma questão geográfica, já que os municípios de Nova Iguaçu e Mesquita, palcos das matanças da noite de 31 de março, no máximo fazem parte da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Na prática, a Baixada Fluminense tem a mesma importância que o igualmente conturbado norte do país, que recentemente ocupou as manchetes dos jornais com a execução da irmã Dorothy. É um tsunami pelo qual temos um interesse passageiro, devido a seus contornos de tragédia. Para nós, a Baixada é uma espécie de cidade invisível.
Além de não ter um interesse real na Cidade Invisível, a Cidade Partida não dispõe de referencial teórico para compreender a tragédia social que se esconde por trás da Chacina da Baixada. A nossa forçada convivência com as favelas principalmente da Zona Sul obrigou as nossas elites pensantes a formular uma reflexão para tentar entender o que hoje chamamos de poder paralelo, que com suas ruidosas armas domina tanto os morros como o imaginário da Cidade Partida. Nos últimos 20 anos, surgiram teóricos do porte de uma Alba Zaluar, de um Michel Misse e de um Marcos Alvito, aos quais podemos recorrer quando o outro lado da Cidade Partida esquarteja o jornalista Tim Lopes, nos acorda com as balas trocadas entre Lulu e Dudu na Rocinha ou nos impede de chegar ao aeroporto internacional ou à Ilha do Fundão. Precisamos decifrar a esfinge antes que ela nos devore.
Uma das evidências de que não entendemos a Cidade Invisível está no modo como tanto a mídia como os chamados movimentos sociais reagiram à presença da polícia nas manifestações promovidas com o objetivo de exigir justiça para as vítimas da Chacina. Nós naturalizamos a presença daquele grupo, aceitando-a como um legítimo direito da instituição de se engajar na luta por direitos humanos e, no máximo, como uma hipócrita política de relações públicas. Para a população da Baixada Fluminense, tratava-se de uma clara e ostensiva intimidação dos membros dos mesmos grupos de extermínio que promoveram a chacina. Para a Cidade Invisível, o crime organizado não é o tráfico de drogas, mas a polícia. Pode ser Jesus Cristo redivivo, mas lá, se vestir azul, passa a ser visto como matador.
Também temos dificuldade para mensurar o poder dos grupos de extermínio na Cidade Invisível. O interesse jornalístico gerado pela Chacina da Baixada trouxe à luz uma série de dados reveladores sobre a atuação deles, por exemplo, o fato de que entre 1995 e novembro de 2004 houve 20 mil homicídios na região, dos quais menos de 10% foram elucidados. Mas as inúmeras reportagens produzidas desde a fatídica noite de 31 de março em geral tiveram como objetivo mostrar como as vítimas morreram na mão de um punhado de policiais, sempre precedidos do adjetivo ''maus'' para desvinculá-los da instituição a que pertencem. Como o tráfico da Cidade Partida jamais desceu o morro para disputar uma vaga na Câmara de Vereadores, temos dificuldade de reconhecer a polícia mineira como a principal força política da Baixada Fluminense desde pelo menos Tenório Cavalcanti. Além de pagar as taxas de proteção cobradas pelos 26 grupos de extermínio que atuam na Cidade Invisível, a população vota em peso em políticos que no mínimo foram processadas devido à fama de xerifes.
A Cidade Invisível só representa algum incômodo ou ameaça no momento em que se torna visível, como agora. É por isso que podemos contar nos dedos os estudos acadêmicos sobre os grupos de extermínio, como os dos sociólogos Josinaldo Aleixo e José Cláudio Souza Alves. Mas é bom que a Cidade Partida não deixe que a Chacina da Baixada caia no esquecimento tão logo os jornais que a noticiaram passem a ser usados para embrulhar o peixe. Ela no mínimo é um alerta para a tentação cada dia maior no Rio de Janeiro, de ignorar a normalidade democrática no combate ao crime organizado. Chegamos a um nível tal de saturação com a violência que estamos dispostos a dar carta-branca a qualquer justiceiro com disposição de matar os monstros enquistados em nossos morros. Tragédias como essa são no máximo exceções que confirmam a regra.
Para quem pensa que essa tentação é uma mera possibilidade teórica, vale uma visita aos primeiros capítulos do livro em questão, nos quais Zuenir Ventura discorre sobre o encanto da classe média com os homens de ouro da polícia carioca. Mais alarmante ainda é a constatação de que uma importante instituição que patrocina projetos sociais está pensando em se transferir de um conflagrado morro na Zona Norte para Rio das Pedras. A paz dos matadores liderados pelo hoje vereador Nadinho, dizem à boca pequena os seus organizadores, é garantia de que as aulas de cidadania não serão interrompidas por guerras de facção ou incursões policiais. Ela também é emblemática de nosso desprezo pela ordem democrática.