Título: Publicidade opressiva
Autor: Fernando Orotavo Neto
Fonte: Jornal do Brasil, 15/10/2004, Outras Opiniões, p. A-11

Ninguém ousa questionar o poder da imprensa, num mundo cada vez mais globalizado, onde as notícias veiculadas são difundidas com velocidade impressionante (on line), para um número cada vez maior de indivíduos. Daí não serem raras as manifestações no sentido de que ''a imprensa é o quarto poder da República'' ou de que ''no Brasil não há opinião pública, mas opinião publicada''.

A liberdade de expressão (e de manifestação do pensamento, em todas as suas formas) alçada à categoria de direito fundamental do cidadão (CF, art. 5º, IX) têm por finalidade a formação de cidadãos conscientes, a transparência e fiscalização das gestões públicas, a livre circulação de informações e idéias, em suma e em síntese, o fortalecimento da democracia. Sem liberdade para opinar e imprensa livre, o cidadão perde o direito de ser informado e o seu poder de tomar decisões resta diminuído, tornando-se refém do status quo.

Todavia, partindo da premissa de que à toda outorga de poder corresponde o nascimento de um dever, que lhe é correlato e indissociável, o leitor por certo concordará comigo quando afirmo que uma coisa é imprensa livre, outra, muito diferente, é imprensa irresponsável. Assim, é muito natural que o ordenamento jurídico, ao mesmo tempo em que reconhece a liberdade da imprensa, ponha à disposição do indivíduo os meios processuais e constitucionais hábeis para reparar os abusos que porventura forem cometidos em desfavor da vida privada, da intimidade, da honra e privacidade alheias, já que esses bens jurídicos são igualmente tutelados constitucionalmente (CF, artº 5º, V e X).

Não por melhores motivos, senão pelo fato de que as leis já prevêem institutos de controle tendentes a sancionar eventuais abusos, é que entendo ser absolutamente inconstitucional a criação de um Conselho que tenha por função fiscalizar a imprensa, o que só serviria ao desígnio daqueles que pretendem mutilá-la, tornando-a subserviente e débil.

Entretanto, situação totalmente dissímile a até aqui exposta - e que ainda não encontra normatização nas leis pátrias - acontece quando o peso da opinião publicada tem por escopo pressionar e influenciar decisões judiciais que devem primar pela técnica, isenção e imparcialidade.

Na década de 60, nos EUA, no auge da Guerra Fria e da ''caça aos comunistas'', a imprensa julgava e condenava os cidadãos que não interessavam ao regime, relegando para o Judiciário a função menor de referendar o veredicto antecipado da opinião pública. Vigia a época do chamado trial by media (julgamento pela imprensa) ou pretrial (pré-julgamento), ocasião em que muitos perderam sua liberdade sem direito a um processo justo (fair trial). Repórteres pensavam que eram juízes, editores de jornais, desembargadores.

No Brasil, dada a violência em que vivemos, reina, hoje, igualmente, aquele clima assustador de obsessão punitiva, como se as condenações constituíssem solução para todos os males. Não são raros os casos em que, antes mesmo de ser julgado pelo tribunal, o cidadão já foi julgado por jornais e TVs.

Ora, é impossível nos furtarmos de perceber que a imprensa tem a sua parcela de culpa na manutenção desse estado de coisas, culpa esta que pode ser partilhada com aquela espécie peculiar de juiz ou procurador que não resiste à lisonja de ser instantaneamente transformado em autoridade-show. Essa publicidade opressiva, que transforma pessoas de bem em inimigos públicos nº 1, aos olhos de toda a Nação, e compromete o curso regular e natural da Justiça, deve ser refreada. Não se trata de comprometer a liberdade da imprensa, mas de fixar-lhe os limites, porque liberdade sem limites é opressão.

Na Inglaterra e na França, países que respiram liberdade e nos quais a história pode testemunhar duas das mais importantes revoluções de que o mundo teve notícia, a liberal e a iluminista, foram criadas normas regulando a matéria, sendo que na França, o Código Penal Francês, no capítulo destinado aos crimes de ''entraves à l'exercice de la justice'', prevê, em seu artigo 434-16, a punição de quem promove, através da imprensa escrita ou audiovisual, pressões para influenciar testemunhas e juízes.

Aqui, além de urgir a adoção de norma penal assemelhada, já proposta por eminentes juristas, mas ainda não posta em prática, poder-se-ia criar uma norma processual, a ser inserida dentre as hipóteses de suspensão do processo previstas no art. 265 do CPC, autorizando o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, a suspender o processo sine die sempre que se verificar que as manchetes do noticiário podem comprometer ou tornar muito difícil que o julgamento da causa se realize no clima de isenção e imparcialidade necessários, sem influências e pressões, já que esses vícios não são privilégio das causas penais.

A imprensa deve ser livre, mas a Justiça, também.