Título: A barbárie está em nós
Autor: Cândido Grzybowski*
Fonte: Jornal do Brasil, 28/04/2005, Outras Opiniões, p. A9

A Chacina da Baixada, em si mesma absurda e abominável, está caminhando para ser simplesmente mais uma chacina. Ou alguém acredita que desta vez vai haver mudanças? Ser pobre, negro(a) e favelado(a) já é ser um candidato (a) potencial a uma chacina - parece que o mais apropriado seria dizer alvo certo. Só não se sabe quando, mas que ela virá isto ninguém duvida. Parece que a melhor solução é deixar de acreditar de vez nas instituições e poderes que nos governam e tratar de se mudar para lugar mais seguro, o mais depressa possível.

Mas o que mais me choca é ver que nos recusamos a ir ao fundo da questão. Já temos dados e análises suficientes, ao menos aqui no Rio de Janeiro, para saber que a violência é seletiva. Trata-se de uma violência tendenciosa geograficamente, considerando a região metropolitana do Rio. Dados publicados no ano passado pelo Observatório da Cidadania - Relatório 2004, com base nos estudos de Sílvia Ramos e Julita Lemgruber, revelam que a probabilidade de ser assassinado é de 6 a 20 vezes maior se alguém vive nas áreas mais pobres ao invés de desfrutar da proteção da Zona Sul do Rio. E se você é jovem (de 15 a 24 anos) e negro, vivendo nestas áreas onde os índices de violência até superam zonas de guerra aberta, a sua chance de ser assassinado aumenta em 400%.

Que Rio é este? Que Brasil é este? É forçoso reconhecer que tem sido assim desde muito tempo. A exclusão social com requintes de violência é nosso estigma maior, herança colonial renovada, atual, cotidiana. Tratamos a exclusão como exclusão, sem meias palavras. Temos polícia para isto. Temos Judiciário para isto. Fazemos e renovamos leis para isto. Dói constatar verdade tão elementar? Isto porque nem eu, nem você, vivemos nas condições socais, no meio, enfim, onde esta é a regra. Regra assassina? Claro! Por que a dúvida? Ou os(as) excluídos(as) se enquadram ou bala neles (as). A violência é tolerada, a promoção dos direitos de cidadania, não.

É claro que a Chacina da Baixada choca. Mas foi ''lá longe'', na Baixada. Você já esteve lá? Moraria lá? Sinceramente, quando pobres são assassinados (as) é como se fosse ''lá longe''; não é próximo de nós. Tiro esta conclusão por estas semanas pós-chacina e como parte desta comunidade fraturada estruturalmente, como somos no Rio. É mais fácil chorar pelo Papa morto que pelos mortos (as) da Baixada. Sinto até vergonha em constatar isto.

A barbárie está em nós, em nosso modo de viver, de produzir poder público, de reagir frente às nossas mazelas. Fechamo-nos, fugimos de nós mesmos, em vez de encararmos os problemas que negam humanidade e cidadania a uma grande parcela do que somos como cidade. Os ideais republicanos ainda não nos movem. Somos movidos em busca de privilégios, de benefícios, de vantagens. Os direitos iguais parecem nos incomodar, mais do que nos fazer agir. No fundo, não queremos um Estado para todos(as), que garanta direitos básicos para cada ser humano, cada cidadão (ã) vivendo aqui.

A Chacina da Baixada revela todas as nossas mazelas. Temos uma Polícia para nos proteger das ''classes perigosas'', matando se preciso. Mesmo quando tal Polícia extrapola, revelamos tolerância. Ainda não estamos no ponto de ver que se há solução - e há - ela depende de nós, cidadãs e cidadãos mobilizados (as), empurrando governos no caminho dos direitos.

Até onde? Até quando? Até onde e quando nós não agirmos. Roupas brancas não são suficientes. Nossa indignação cidadã deve ser capaz de produzir uma onda de pressão que transforme governantes e polícia e faça valer a República Democrática para todos (as). Que a solidariedade às vítimas e à população da Baixada nos dê forças para finalmente inverter este estado de coisas.

*Cândido Grzybowski é diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)