Título: Polêmica em Angra III
Autor: Joaquim Francisco de Carvalho*
Fonte: Jornal do Brasil, 28/04/2005, Outras Opiniões, p. A9

A construção de Angra III não é importante para o suprimento de eletricidade para o estado do Rio, porque o sistema brasileiro é interligado, permitindo que se transporte para cá, energia gerada em outras regiões. Todo país que dispõe de potencial hidrelétrico significativo, aproveita-o ao máximo e só então parte para alternativas termoelétricas convencionais ou nucleares. Como, até o presente, o Brasil aproveitou apenas 25% de seu potencial hidrelétrico, em vez de construir aquela usina, seria mais lógico que se construíssem novas hidroelétricas e se reforçasse o sistema de transmissão.

Com Angra III, o melhor que se tem a fazer é contabilizar o prejuízo e aplicar os recursos que ali continuariam a ser desperdiçados, no desenvolvimento de sistemas eletronucleares de concepção mais avançada. Aliás, como sempre acontece, o que se gastaria para fazer a obra superaria em muito o previsto pelos interessados na construção. E é bom lembrar que, se Angra III algum dia entrasse em operação, o prejuízo aumentaria na medida da diferença entre seus custos de geração e os das hidroelétricas. Cálculos conservadores mostram que tal prejuízo poderia chegar à casa dos 280 milhões de reais, por ano.

É um equívoco pensar que as usinas de Angra dos Reis garantem o domínio da tecnologia nuclear. Na verdade, os centros de excelência nessa especialidade são, pelo que conheço, o Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares de São Paulo) e o CTM/SP (Centro Tecnológico da Marinha em Aramar), além de uns poucos outros, em certos campos.

Quanto às usinas de Angra, sua importância tecnológica está na operação, que é de responsabilidade da Eletronuclear, subsidiária da Eletrobrás, que conta com um quadro profissionais de excelente nível, em permanente renovação, com os seniors, prestes a se aposentarem, transferindo experiência para os juniors, que vão entrando na empresa. Não é necessário construir Angra III, para que esse processo siga em frente.

No tocante à engenharia propriamente dita ¿ embora ainda conte com um pequeno grupo de bom nível, remanescente da antiga Nuclen ¿ a Eletronuclear não tem quadros para abordar problemas novos, relacionados, por exemplo, à física dos combustíveis, ou à monitoração, diagnóstico e segurança dos sistemas, etc.

Assim, sempre que surge algo de mais específico em Angra I e Angra II, a Eletronuclear recorre a fabricantes ou a firmas de engenharia, em geral estrangeiras, ou ¿ para casos mais simples ¿ a umas poucas firmas brasileiras, algumas das quais contam com ex-engenheiros da Nuclen. Recorre-se também ao Ipen, que dispõe de departamentos especializados, onde trabalham dezenas de PHDs altamente qualificados, com larga experiência no Brasil e em países mais avançados.

Entre os profissionais do setor, prevalece a convicção de que, se os recursos que seriam gastos para construir Angra III fossem dirigidos para instituições da capacidade do Ipen e do CTM/SP, o Brasil poderia, num prazo de dez a doze anos, terminar o projeto do reator de 50 MW térmicos do CTM/SP em Aramar, para, em seguida ¿ usando a experiência adquirida ¿ ampliar sua escala e construir um protótipo de reator de terceira geração. No que diz respeito ao enriquecimento do urânio, é importante esclarecer que a fábrica de Rezende não têm capacidade para abastecer sequer a usina de Angra I, muito menos Angra II, portanto não se pode dizer que ela só será economicamente viável com a construção de Angra III, ainda mais porque, dada a importância estratégica do ciclo do combustível nuclear, o que vale é a compatibilidade entre a escala de produção da unidade de enriquecimento, com o restante do ciclo.

Para conseguir essa compatibilidade, o governo pode acumular um estoque estratégico de urânio enriquecido na usina de Rezende a 3% ¿ impróprio para fins bélicos, porém importantíssimo para ser usado mais tarde, quando o Ipen e o CTM/SP tiverem desenvolvido as usinas intrinsecamente seguras, na faixa de 200 MW térmicos, que são as que convêm ao Brasil, para atender a sistemas isolados, cuja conexão ao sistema nacional interligado é economicamente inviável.

*Joaquim Francisco de Carvalho, licenciado em física e mestre em engenharia nuclear, foi diretor industrial da Nuclen.