Título: Crimes contra os direitos humanos
Autor: Wagner Gonçalves
Fonte: Jornal do Brasil, 24/04/2005, Outras Opiniões, p. A15

O relator da CPI sobre a ação dos grupos de extermínio no Nordeste, deputado Luiz Couto (PT-PB) pede o indiciamento de delegados, juízes, promotores e de outros agentes públicos. Os crimes estão ligados a tráfico de drogas, armas, roubos de cargas, proteção de políticos corruptos, máfia do combustível, lavagem de dinheiro, máfia dos medicamentos, extermínio de menores residentes nas periferias etc - e questões políticas.

Os grupos de extermínio, como menciona o relatório, são constituídos por mandantes, intermediários, protetores e matadores.

Dentro desse quadro, que envergonha a nação brasileira, uma grande vitória, defendida por todos aqueles que militam na defesa dos direitos humanos, foi a mudança constitucional que prevê a federalização dos crimes contra os direitos humanos.

Ora, se o Brasil, por força dos tratados internacionais, responde pelos crimes contra os direitos humanos ocorridos em seu território, nada mais lógico do que, em casos especialíssimos, transferir para a Justiça Federal o julgamento desses crimes, quando os poderes do Estado se mostram lenientes ou comprometidos com tais delitos.

Por isso, a federalização veio em boa hora. Resta saber agora como ela se dará e se será eficaz no combate à impunidade, não sobre o pressuposto de que a Justiça Federal seja melhor do que a Justiça Estadual, mas porque ela está mais distante das influências políticas locais e sua polícia judiciária. A Federal não recebe dos cofres públicos estaduais, nem estará investigando agentes públicos federais, mas estaduais, muitas vezes os autores dos crimes.

Como compete ao procurador-geral levantar a questão, submetendo-a ao Superior Tribunal de Justiça, é fundamental estabelecer alguns parâmetros para essa federalização, sob pena de o novel instituto ser banalizado ou desvirtuado ou representar mais um conflito entre instituições ou órgãos públicos, como acontece, muitas vezes, entre polícia e Ministério Público, quanto às investigações.

Por isso, ouso trazer à baila três pressupostos que podem justificar o pedido de federalização: poder econômico, poder político e agentes do Estado. Ou seja, se o crime é cometido com a participação ou conivência de agentes públicos (policiais, juízes, promotores, membros do executivo ou seus protegidos), havendo o envolvimento de políticos locais, empresários, grandes proprietários de terras, industriais, comerciantes etc, passa a haver uma situação objetiva, em alguns casos, que leva à impunidade. Acresça-se a isso a omissão ou demora do aparelho estatal em apurar e julgar tais crimes. E a existência de uma organização criminosa, apesar de não determinar, por si só, a necessidade da federalização, é outro indicativo que deve ser considerado.

Uma outra questão, que merece cuidadoso exame, é quanto à possível não aplicabilidade do instituto da federalização, ao argumento de que o dispositivo constitucional não é auto-aplicável, mas depende de regulamentação, para se definir em quais crimes cabe ser feito o pedido. Ou seja, a iniciativa do procurador-geral da República, ao levantar o incidente de alteração de competência, far-se-ia em função de determinados tipos penais previstos em lei.

Entendo que não há como limitar a nova regra constitucional, mesmo porque se desloca a competência nas infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União (art. 109, inc. IV da Constituição). No caso, sendo o Brasil signatário de tratados internacionais pela implementação e defesa dos direitos humanos, respondendo inclusive economicamente em fóruns de ultra-mar, tendo a obrigação de fazer prevalecer referidos direitos no país (art. 4º, inc. II, da Constituição), e estando prevista a legitimidade do procurador-geral para levantar o incidente perante o Superior Tribunal de Justiça, há o arcabouço jurídico para a federalização por interesse da União. E definir, de antemão, os tipos penais é manietar referido interesse que só pode ser analisado em cada caso.

Assim, a primeira proposta de federalização, que se encontra no Superior Tribunal de Justiça, o brutal assassinato da irmã Dorothy Stang, é um marco inicial na definição de pressupostos que irão nortear o instituto da federalização. Oxalá seus ministros estejam iluminados no dia da decisão, em prol da prevalência dos direitos humanos no país.