Título: "Governo precisa negociar agenda'"
Autor: Rodrigo de Almeida
Fonte: Jornal do Brasil, 25/04/2005, País / Entrevista, p. A3

Entrevista: Fabiano Santos

Como cientista social qualificado, o professor Fabiano Santos esquivou-se de cair na esparrela da caricatura e do achincalhe público quando o deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) se elegeu presidente da Câmara. Via ali uma inexorável oportunidade por melhores condições de atuação do Legislativo. Não só por salários, diga-se, mas um ato em nome de voz mais ativa dos deputados no processo decisório da Casa ¿ em geral marcada pela centralização de poder e pela submissão aos interesses do Executivo. Depois de quase três meses tisnados por aventuras retóricas e pela sinceridade incômoda de Severino, Santos ainda acredita no que considera mais relevante: o clamor pela profissionalização da atividade legislativa. O Congresso, diz, precisa de maior instrumentalização, capaz de garantir-lhe condições de comandar os rumos do país com o governo. Professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Fabiano Santos acha que falta ao governo e, em especial ao PT, uma visão adequada do funcionamento das instituições. E pede uma pauta legislativa mais clara. Conduzir uma agenda nacional mais firme é condição, segundo ele, para vôos mais suaves na articulação entre Executivo e Legislativo. Nesta entrevista, o cientista político analisa ainda as relações entre os poderes, questiona idéias difundidas sobre clientelismo e refuta mitos vigentes em torno de supostos defeitos do presidencialismo de coalizão brasileiro ¿ denominação para os regimes presidencialistas de contextos multipartidários, nos quais a existência de uma maioria parlamentar governista é rara, quando não inexistente. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Um dia depois da eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara, o sr. publicou artigo no JB apontando que a vitória significava uma reação do deputado médio em busca de melhores condições no Legislativo ¿ tanto em questões salariais como para ter voz mais ativa no processo decisório do Congresso. Dois meses e muita controvérsia depois, o sr. acredita que Severino está à altura deste, digamos, papel histórico que poderia lhe caber?

¿ Essa é uma questão-chave para a análise da política nacional. A vitória de Severino Cavalcanti foi fruto de um movimento inexorável. E mais forte do que o próprio Severino. Há vários fatores em questão. Primeiro: o posicionamento dele não é o mesmo da opinião média do brasileiro e nem do próprio Congresso. Como é o presidente da Câmara, essas opiniões ganham outra expressão. E a opinião dele como parlamentar e como presidente da Câmara se confundem. Esse é um fator que perturba a análise. Em segundo lugar, temos a relação com o governo. O Brasil tem grande preocupação com governabilidade. Temos um sistema político complexo, que demanda cuidado, tanto do ponto de vista das instituições quanto das demandas da sociedade, que são prementes. Isso cria problemas na relação do Executivo com o Legislativo. Mas volto a insistir num ponto retratado no artigo. A despeito desses problemas, há hoje um clamor, por parte dos políticos, pela profissionalização da atividade legislativa.

¿ O que significa a profissionalização?

¿ A competitividade política hoje é muito maior do que na geração de 64. Naquele momento, a geração era formada basicamente por oligarquias. Atualmente há uma pluralidade muito maior. Refiro-me ao grau em que o Parlamento representa a morfologia social brasileira. Embora permaneça uma grande distorção, a distância entre a Câmara e a morfologia social é bem menor do que no período anterior. Isso cria dois problemas para o político. Se ele perder as eleições, não será acomodado no aparelho de Estado, em função da crise fiscal e porque o Estado está ocupado por forças de esquerda. Além disso, a competição eleitoral é muito maior. Há um risco maior de perder a eleição. Isso cria a necessidade de profissionalização. Precisará aumentar a estrutura de parlamentar para melhor exercer seu mandato e assim aumentar a probabilidade de permanecer como político. Daí é preciso ter mais voz nas políticas públicas, a fim de mostrar ao eleitorado suas realizações. Precisa de mais verba para uma assessoria mais bem estruturada. Tudo isso está por trás do que Severino representa para o Congresso. A demanda continuará existindo, com ou sem ele.

¿ Mas ele tem condições de comandar um processo de mudança institucional capaz de promover reformas descentralizadoras, que dariam ao deputado acesso mais privilegiado ao Executivo e um mandato mais atuante? Não é mais difícil quando um presidente tem a desconfiança dos mais influentes parlamentares e do próprio governo?

¿ Há dois pontos aí: o Severino e o governo. O governo precisa prestar atenção à forma como se relaciona com o Congresso. Não existe por parte do governo um posicionamento de antagonismo clássico, no sentido populista, de apelar para a opinião pública em busca de apoio para vencer as batalhas no Congresso. Existe uma cultura no governo, principalmente no PT, de crescimento consistente dentro das instituições e, particularmente, dentro do Congresso. O PT foi o único partido de 1982 que conseguiu entrar na categoria dos grandes. O PSDB é uma costela do PMDB e o PFL é uma costela da antiga Arena, hoje PP. O PT avançou na Câmara e no Senado. Mas creio que há uma teoria pouco sofisticada no partido de como as instituições funcionam. Essa teoria não dá conta das complexidades do funcionamento da coalizão no contexto do presidencialismo.

¿ O que falta claramente ao governo?

¿ A articulação de uma agenda legislativa. Uma discussão com as lideranças e com a base sobre essa agenda. Se isso for feito, facilita o trabalho do presidente da Câmara. É preciso lembrar que o presidente da Câmara não é mais do PT. Antes era um trabalho mais ou menos natural. Falava-se diretamente com o presidente da Câmara e pronto. Não é mais. Tem de vir, então, da coalizão. É preciso criar um fórum com os membros da coalizão para discutir qual é a agenda necessária. A sociedade pergunta: qual é a agenda legislativa do governo? Não se sabe. Há opiniões do (José) Dirceu, do Lula, do (Antonio) Palocci. Mas não se sabe qual é exatamente a agenda do governo no Congresso.

¿ Essa indefinição é fruto da divisão do governo ou da ausência de projeto?

¿ Nenhuma das duas coisas. Vem da ausência de uma visão mais sofisticada do funcionamento das instituições. Do ponto de vista legislativo, há uma visão clara sobre um projeto. Existem divisões, que são naturais. Mas isso tem que ser digerido num fórum de discussão com os partidos aliados. O que não é feito. O PT acredita que os outros partidos não se comportam de acordo com as políticas públicas adequadas. Só agem de acordo com fisiologismo, com o clientelismo. Não é isso. Embora os partidos precisem de alocação no aparelho do Estado para fazer sua política, eles também têm visão sobre a agenda nacional. O PT não percebe isso.

¿ Pelo visto, nem a opinião pública.

¿ Alimentada pela discussão que se trava nos partidos e na própria academia. Mas não se adequa à realidade.

¿ Que exemplos podem ser citados?

¿ Se você observar a história recente, houve agenda muito clara durante um bom tempo no governo Fernando Henrique, em torno da qual os partidos se aglutinaram. Era uma agenda de reformas pró-mercado, de enxugamento do setor público, de reforma fiscal. É preciso fazer o mesmo trabalho. Que agenda é possível num governo de centro-esquerda? Que pontos da agenda anterior podem ser adaptados? Isso é feito de improviso. Quando se sentar para discutir a agenda, esse curto-circuito Câmara e governo tende a diminuir.

¿ O presidente da Câmara faz a defesa aberta do nepotismo. E é achincalhado. Mas a prática se repete entre muitos nomes de relevo da República, sem a mesma reação. Não há um foco excessivo nas posições de Severino? Também não há generalização? E como assegurar a impessoalidade do Estado?

¿ O presidente do Supremo, Nelson Jobim, não defende o nepotismo. O presidente da República não defende o nepotismo. O presidente da Câmara defende o nepotismo. Então é natural que os holofotes sejam dirigidos para Severino. Reafirmo: há uma confusão entre a opinião do deputado e do presidente da Câmara. Como presidente da Câmara, ele instalou uma comissão especial para discutir uma proposta contra o nepotismo, que deverá ser votada e provavelmente passará. Portanto, a opinião de Severino, nesse caso, é irrelevante. Uma lei contra o nepotismo significa grande avanço institucional. É necessária porque a legislação precisa supor que pode haver mau uso do recurso público. Nesse sentido, a proibição é importante. Ponto final. Severino, mesmo pensando o contrário, convocou a comissão especial. Acabou a questão.

¿ O sr. critica a transformação do Legislativo num apêndice do Executivo. Ao mesmo tempo, pede maior condução do governo na agenda do Legislativo. Não são posições antagônicas?

¿ Quando um governo decide governar com o Legislativo, constituindo uma base majoritária, não vê o Legislativo em condições de, por si só, definir e executar uma agenda nacional. É preciso tentar na democracia brasileira modificações na distribuição de poderes entre ambos para que o Legislativo tenha condições de governar em caso de limitação do Executivo. Isso demanda buscar realocação da capacidade de definição orçamentária do Congresso, além de um aumento da capacidade de observação das políticas públicas implementadas. Em outras circunstâncias, há uma percepção de que os custos são muito grandes na concessão de ministérios para muitos partidos. Então o governo prefere governar com minoria. É possível. A produção legislativa fica mais truncada, torna-se menor, o Supremo passa a ser chamado a resolver determinados conflitos entre os dois poderes. Faz parte da experiência democrática de vários países. Se o governo não tem condição de definir a agenda, qual a outra parte? O Legislativo, que precisa estar capacitado. Mas o governo Lula demonstrou ter o propósito de trabalhar com maioria.

¿ Quando líderes partidários discutem sobre a presença no governo, o debate não ocorre em bases programáticas, mas a partir da ocupação de cargos. Não é um sinal de que estão mais interessados nos cargos e menos na agenda?

¿ Boa parte das políticas públicas é feita no varejo. Clientelismo é o que chamamos de troca política entre lideranças locais e a capacidade de essas lideranças gerarem certos benefícios. Num país com uma centralização de arrecadação forte, essa liberação de recursos inevitavelmente fará parte das políticas. É necessário ao sistema, às ligações entre o local e o nacional. Quanto mais os recursos forem centralizados na União, maior o mercado para que esse tipo de troca seja feito. Mas não é um defeito dos políticos ou do sistema político. É preciso discutir as relações entre a União e as localidades. Isso não impede, não obstante, a discussão de uma agenda política nacional. O governo tem maior capacidade de desenvolver propostas mais produtivas. E isso deveria ser colocado entre os aliados na coalizão. Se o Executivo não quiser exercer maioria, o Legislativo tem que ter uma instrumentalização melhor para desenvolver essas propostas. Não temos ainda maturidade institucional para que isso aconteça. Mas estamos construindo essa maturidade.

¿ Quais as diferenças no uso da coalizão entre os governos Lula e FH?

¿ Fernando Henrique tinha uma base menor, mais homogênea e uma agenda mais clara. O Lula tem uma base maior, muito mais heterogênea e uma agenda não tão clara. Mesmo porque herda série de questões iniciadas no governo anterior e não resolvidas, como a articulação do setor público com o setor privado. Portanto, o funcionamento foi muito mais suave no governo FH do que no governo Lula. A capacidade do governo FH de aprovar leis foi muito maior.

¿ Lula, porém, contou com a ajuda da oposição. Isso não compensou a inexistência de uma base mais homogênea?

¿ O governo Lula teve de encarar uma agenda que não era a dos sonhos. Mas governar é também criar condições para poder governar. A todo momento, Lula precisa disso, seja do ponto de vista interno, na rearticulação do setor público com o setor privado, seja do ponto de vista externo, para criar uma margem de manobra vis-à-vis os credores internacionais. Mas não existe clareza do que seria uma agenda do governo. Essa margem de manobra já foi criada? Já temos condições de avançar uma proposta de centro-esquerda? Chegou o momento de uma definição mais clara se estamos trabalhando com uma agenda de centro-esquerda ou estamos ainda em questões herdadas do governo anterior.