Título: Mais uma chacina
Autor: Maria Clara L. Bingemer*
Fonte: Jornal do Brasil, 25/04/2005, Outras Opiniões, p. A11

Com as atenções do país e do mundo inteiramente voltadas para Roma, onde morria e era velado o Papa João Paulo II, e eleito seu sucessor, Bento XVI, não repercutiu com o clamor devido a chacina da Baixada que deixou um saldo de dezenas de mortos, quase todos jovens, e mesmo adolescentes e crianças. Mas o absurdo do fato deixou a cidade e o Estado perplexos.

Infelizmente a chacina da Baixada não é a primeira e, sabemos, nem será a última. As anteriores, ocorridas em Vigário Geral e na Candelária, até hoje traumatizam o povo carioca e fluminense. E colocam um estigma sobre o Rio de Janeiro como capital da violência e sobre o Brasil como o país que vai se tornando campeão na funesta arte de matar, superando nações que se destacavam por essa triste estatística, como os Estados Unidos e outros.

A vida tornou-se barata, banal. Perdê-la brusca e violentamente é uma possibilidade cada vez mais próxima e real a cada dia que passa. Caminhar pelas ruas e viver no território do Estado do Rio passou a ser um perigo comparável à guerras como a do Iraque ou a do Afeganistão. Estamos em guerra civil não declarada. E as vítimas, como sempre, são os mais indefesos e inocentes habitantes da cidade e do Estado. Crianças, jovens, adolescentes que inadvertidamente se encontram no lugar onde a brutalidade do tráfico mostra-se inclemente, ou tornam-se alvo de uma polícia descontente e desorientada, que aumenta sua lamentável coleção de vítimas.

Vendo as fotos, os nomes, as idades, a lista dos que perderam suas vidas nesta chacina, emudecemos em nosso horror. A grande maioria situava-se na faixa etária entre 10 e 15 anos; estava começando a viver. O desespero dos parentes e amigos revela uma crua realidade: o grau de sofrimento imposto pela barbárie em nosso território. A violência ultrapassou qualquer limite do bom senso e da normalidade, e já atinge o nível do patológico e do absurdo, ceifando vidas sem qualquer controle.

Tudo isso deveria levar-nos a uma séria reflexão: por que as chacinas mais massivas e bárbaras acontecem em bairros e lugares mais pobres e carentes. E à medida que avançamos na reflexão e análise dos fatos, vamos percebendo com maior transparência e lucidez aquilo que o discurso da Igreja Católica tem repetido até a saciedade: a paz é filha da justiça, ou - como dizia o saudoso Papa Paulo VI, em sua encíclica ''Populorum Progressio'' ( O progresso dos povos) - o desenvolvimento é o novo nome da paz.

Não poderá haver paz nem pretensão de construí-la enquanto os moradores da periferia das grandes cidades mal ganharem o necessário para comer e perderem incessantemente suas novas gerações para o tráfico que lhes oferece possibilidades de dinheiro fácil à custa de uma vida na infração e na clandestinidade. Uma vida que provavelmente será curta mas lhes permitirá desfrutar por breve tempo das benesses inalcançáveis do progresso.

Não poderá haver paz nem pretensão de construí-la enquanto uma polícia mal preparada, mal remunerada, descontente e armada entrar sem controle a qualquer momento nas áreas de risco já fazendo uso de suas armas de maneira mortífera e letal. Quando se chega ao ponto em que chegamos, medidas emergenciais são, sim, necessárias para conter o excesso da barbárie. Mas, por outro lado, é necessário começar paralelamente um processo paulatino e persistente de formação da polícia, de projetos sociais que minimizem a grande e crescente brecha entre ricos e pobres, que exacerba os contrastes de vida e o desejo de tomar violentamente o que não se tem pelas vias da justiça e do direito.

Diante do horror da Baixada, que recorda outros horrores, é mais do que tempo de recordar as palavras veementes e indignadas do saudoso João Paulo II quando de sua primeira visita ao Brasil, em 1980, na favela do Vidigal: ''Olhai em volta. Não vos dói o coração?'' Referia-se o papa justamente àquela comunidade mergulhada em extrema pobreza e situada em meio às mais ricas residências da cidade. O contraste denunciador da injustiça, o Papa o intuiu. A violência que esse contraste gerou, talvez também o tenha intuído. Em todo caso, não é tarde para começar um processo verdadeiro e eficaz de erradicação desta violência que está nos roubando toda uma geração de brasileiros. O povo não suporta mais chacinas e almeja ardentemente um pouco de justiça e de paz.

*Maria Clara Lucchetti Bingemer, decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, escreve às segundas nesta página