Correio Braziliense, n. 21477, 04/01/2022. Saúde, p. 10

Risco de um impulso climático
Paloma Oliveto


Nos planos da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2030, mais de 1 bilhão de pessoas estarão curadas de doenças tropicais negligenciadas, como malária e Chagas. Além disso, enfermidades como tracoma e bouba, que ainda atingem milhares de crianças e adultos, serão  eliminadas. Essas são algumas das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, um plano de  ação global das Nações Unidas para redução da pobreza e desigualdade.

Porém, o relatório de monitoramento de 2021 da OMS aponta que muitas das metas previstas para  o ano anterior não foram cumpridas. Além do desafio de recuperar o tempo perdido em parte,  devido à pandemia de covid-19 —, os planejadores de políticas públicas precisam levar em conta um  complicador. Em vez de diminuir, projeções indicam que enfermidades transmitidas por vetores  caso de boa parte das tropicais negligenciadas vão aumentar devido às mudanças climáticas.

As emissões antropogênicas de gases de efeito estufa fizeram com que a temperatura média global  aumentasse 1°C acima dos níveis pré-industriais. Os impactos decorrentes foram profundos,  incluindo aumento de calor, diminuição da cobertura de neve e aceleração da elevação do nível  do mar. Enquanto algumas áreas do planeta estão mais úmidas, outras ficaram mais secas ambas,  porém, passando por eventos extremos de precipitação.

Esse cenário tende a piorar. Apesar de o Acordo de Paris estabelecer metas para limitar o aumento da temperatura a 2°C até 2100, a avaliação de cientistas climáticos é de que, com o ritmo  lento das medidas de redução das emissões de gases de efeito estufa, o planeta pode chegar ao  século 22 quatro graus mais quente. Com o calor e as mudanças nos sistemas de chuvas, virão os  mosquitos, responsáveis por transmitir doenças como dengue, malária, zika e chicungunnha, entre  outras. “A maioria das doenças tropicais negligenciadas tem essa relação direta com o clima pelo  fato de serem, muitas vezes, transmitidas por vetores, insetos. Então, a questão climática  contribui diretamente. Qualquer desequilíbrio em relação a sol, chuva, umidade favorece a proliferação desses vetores”, observa Mariana Vasconcelos, infectologista da Fundação Francisco Xa vier, em Minas Gerais.

De acordo com Robert Dubrow, pesquisador do Departamento de Ciências de Saúde Ambiental da  Universidade de Yale, nos EUA, o clima pode afetar a dinâmica de transmissão, a disseminação  geográfica e o ressurgimento de doenças transmitidas por vetores de diferentes formas. “Além de  ter efeitos diretos sobre espécies individuais, as mudanças climáticas podem alterar habitats de  ecossistemas inteiros (incluindo urbanos), nos quais vetores ou hospedeiros não humanos podem  prosperar ou falhar”, diz Dubrow, autor de um artigo sobre o tema publicado na revista Nature.

A distribuição geográfica de vetores como o Aedes aegypti, mosquito que transmite a dengue, por exemplo, é limitada por  temperaturas mais frias. “À medida que a Terra aquece, as preocupações são de que o mosquito  e o vírus se espalhem para latitudes e altitudes mais elevadas, que a incidência aumente e que  a estação de transmissão se prolongue em algumas áreas endêmicas”, observa Dubrow. “Há também a  possibilidade de uma diminuição na incidência de dengue ou de outras doenças transmitidas por vetores em áreas endêmicas se elas ficarem tão  quentes que a sobrevivência ou a alimentação do vetor seja inibida. Essas áreas, no entanto, ainda  enfrentariam outros impactos severos do calor extremo.”  Cenário brasileiro  No Brasil, os modelos apontam para um futuro preocupante. Um estudo de pesquisadores da  Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da Universidade Federal da Paraíba, da Universidade Federal  Fluminense e do Instituto de Saúde Global de Barcelona fez previsões, com algoritmos, sobre a  prevalência e a distribuição de três doenças tropicais negligenciadas leishmaniose visceral,  febre amarela e malária em cenários de aquecimento global. A pesquisa revelou que, enquanto nas  regiões Norte e Centro-Oeste o clima favorecerá a febre amarela, no Sudeste e no Sul, a leishma niose visceral encontrará condições propícias à disseminação.

“Nos cenários para malária, foi observado aumento nas condições climáticas favoráveis à alta incidência na Mata Atlântica,  onde, atualmente, ocorrem casos extra-amazônicos”, diz o artigo, publicado na revista Sustentabilidade em Debate.

Doenças transmitidas por carrapato, como febre maculosa, Lyme e Powassam, também podem  proliferar em todo o mundo, segundo um alerta da Universidade de Oxford, no Reino Unido. “Os  carrapatos transmitem uma gama notável de micro e macroparasitas muitos dos quais são patógenos  de humanos e animais domésticos. Obviamente, impactos negativos serão aparentes, como mudanças  na incidência e prevalência de doenças. A evidência de que a mudança climática está afetando  enfermidades causadas por patógenos transmitidos por carrapatos é considerável”, ressalta Pat  Nuttel, professor de arboviroses da instituição e editor do livro acadêmico Climate, Ticks and  Diseases, que explora a associação entre clima, carrapatos e doenças.