O Estado de S. Paulo, n. 46607, 26/05/2021. Política, p. A4

Após ‘tratoraço’, governo muda regra no Orçamento

Idiana Tomazelli
Breno Pires 


Após o Estadão revelar o esquema do orçamento secreto, o governo editou ontem uma portaria que entrega formalmente ao Congresso a decisão sobre onde aplicar bilhões de reais de recursos do Orçamento da União de 2021 provenientes de emendas de relator. No ano passado, o governo desrespeitou regras orçamentárias e repassou a um grupo de deputados e senadores a sua responsabilidade de impor onde aplicar ao menos R$ 3 bilhões.

A portaria assinada ontem não tem efeito retroativo e não livra o governo de questionamentos pela prática adotada com o orçamento de 2020. O Ministério Público junto ao TCU pede abertura de investigação para averiguar se o presidente Jair Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade por ferir as normas orçamentárias.

Na ocasião, Bolsonaro considerou que a interferência do Congresso “contraria o interesse público” e favorece o “personalismo”. Mesmo assim, ignorou seu próprio veto e permitiu que um grupo de parlamentares decidisse o que fazer com os recursos aprovados para 2020. A maior parte foi parar nas bases eleitorais dos aliados para financiar a compra de máquinas e tratores a preços acima da tabela de referência do governo, razão pela qual o esquema passou a ser chamado de “tratoraço”.

Até hoje, Bolsonaro e os ministros Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) dizem que o esquema montado pelo governo para aumentar sua base de apoio no Congresso é uma “invenção” da imprensa porque, na sua versão, a decisão sobre a aplicação dos recursos de emenda de relator era do Congresso. A publicação da portaria, no entanto, mostra que o Planalto montou uma ofensiva para tentar “regularizar” a prática. O ato, contudo, não tem o poder de corrigir o que foi feito no ano passado.

Segundo uma fonte que participou das negociações, a portaria dá formalmente poder ao relator do Orçamento para definir quanto e onde serão aplicados os recursos das emendas de relator – que hoje somam R$ 18,5 bilhões, mas podem cair a R$ 17,2 bilhões devido a um corte proposto em acordo com o Congresso.

Diferentemente das emendas individuais e de bancada, previstas na Constituição e que têm valor definido e distribuição igualitária entre congressistas aliados e de oposição, ainda não se sabe quais parlamentares serão agraciados com o envio desses recursos a suas bases. Há dúvidas, por exemplo, sobre como se dará a repartição dos valores ou, até mesmo, a transparência das indicações.

“Estão regulamentando a ‘bandalha’ das emendas do relator-geral. E continuamos querendo saber: quais serão os critérios de seleção dos parlamentares contemplados? Como serão distribuídos os valores entre eles?”, critica o economista Gil Castello Branco, fundador da Associação Contas Abertas.

O economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper e que já foi chefe da Assessoria Especial do Ministério da Fazenda, avalia que a portaria eleva o “grau de captura” do Orçamento pelo Congresso. “A portaria tenta contar uma história de que a coisa estava na lei, era regular, mas está instituindo e detalhando uma prática bastante negativa do ponto de vista da qualidade do gasto”, afirma.

Para ele, a própria emenda de relator como instrumento de destinação de recursos pode ser questionada, pois hoje a Constituição prevê seu uso apenas para erros e omissões no Orçamento. “Por que as emendas individual e de bancada foram tornadas obrigatórias por emenda constitucional e a emenda de relator foi instituída por lei ordinária e tornada obrigatória por portaria? Por que dois pesos e duas medidas? Eu acho que tem que ser emenda constitucional”, diz Mendes.

A portaria foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) e é assinada pelos ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Secretaria de Governo, Flávia Arruda. O Ministério da Economia resistia ao dispositivo, mas, segundo apurou o Estadão/broadcast, uma reunião técnica realizada na noite de anteontem selou a redação final do documento.

A ala política já havia tentado formalizar a concessão desse poder de indicação do destino final das emendas de relator na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2020 e 2021, mas o dispositivo foi vetado a pedido da Economia. O veto, depois, foi mantido pelo Congresso, daí os questionamentos sobre a legitimidade das indicações feitas pelos parlamentares em 2020.

Hoje, os maiores beneficiários das emendas de relator são os ministérios da Saúde (R$ 7,8 bilhões), do Desenvolvimento Regional (R$ 6 bilhões), Agricultura (R$ 1,7 bilhão), Cidadania (R$ 1,1 bilhão) e Educação (R$ 1 bilhão), segundo o Instituição Fiscal Independente (IFI).

O Estadão/broadcast questionou Ministério da Economia e a Secretaria de Governo sobre como se dará a divisão dos recursos em 2021 e como será dada transparência a essas decisões. A Economia não respondeu diretamente às nove perguntas enviadas pela reportagem, mas encaminhou uma nota em que afirma que “as diversas pastas, caso entendam necessário, podem demandar informações adicionais ao relator-geral”. O ministério também ressaltou que a responsabilidade de execução é de cada ministério. A Secretaria de Governo não respondeu aos questionamentos da reportagem.

‘Quais critérios?’

“Continuamos querendo saber: quais serão os critérios de seleção dos parlamentares contemplados? Como serão distribuídos os valores entre eles?”

Gil Castello Branco

Economista e Fundador da Associação Contas Abertas