O Estado de S. Paulo, n. 46609, 28/05/2021. Política, p. A4

TCU cobra documentos do orçamento secreto

Breno Pires


O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Walton Alencar, relator das contas de 2020 da Presidência da República, exigiu que o Palácio do Planalto e o Ministério da Economia entreguem, num prazo “improrrogável” de cinco dias úteis, cópias dos documentos ainda ocultos do orçamento secreto, um esquema montado pelo presidente Jair Bolsonaro, no fim do ano passado, para garantir apoio no Congresso. O pedido se baseia em série de reportagens do Estadão .O ministro justificou a medida pela “relevância do tema”.

As explicações do Planalto deverão ser analisadas no próprio julgamento sobre as contas do governo do ano de 2020, que ocorrerá em 30 de junho. Uma eventual rejeição de contas pelo tribunal pode levantar bases para um possível processo de impeachment de Jair Bolsonaro.

O Estadão revelou um conjunto de 101 documentos nos quais parlamentares que participaram do esquema cobram suas “cotas” autorizadas pelo ministro Luiz Eduardo Ramos, então chefe da Secretaria de Governo. Na época dos acordos, o governo buscava apoio para eleger seus candidatos ao comando do Congresso.

A quantidade exata de ofícios segue até hoje desconhecida. O Ministério do Desenvolvimento Regional, que operou o esquema, firmou cerca de 1,3 mil convênios e contratos de repasses em dezembro de 2020, a maior parte envolvendo os R$ 3 bilhões que usou no “toma lá, dá cá”. O acesso a maior parte desses documentos foi negado ao Estadão pela pasta.

Em despacho encaminhado ao governo, o ministro Walton Alencar cobra explicações detalhadas sobre o manejo de um total de R$ 21,89 bilhões em diversos ministérios no ano passado provenientes de emenda de relator. Deste total fazem parte os R$ 3 bilhões do Desenvolvimento Regional reservados, por exemplo, para a compra de tratores e máquinas agrícolas – aquisições previstas com preços até 259% acima do valor de referência do ministério. Razão pela qual o caso é chamado de “tratoraço” nas redes sociais. O governo diz que a tabela de preços é apenas “ilustrativa”.

O ministro atendeu a uma representação da Secretaria de Macroavaliação Governamental do TCU, que trata de “possíveis irregularidades”, com base nas informações reveladas pelo Estadão. A área técnica do TCU listou, por exemplo, a ausência de critérios objetivos de distribuição de recursos.

“Segundo as informações apresentadas nas reportagens citadas, as emendas de relator (RP9) veiculavam acordos políticos para indicação de recursos orçamentários a serem distribuídos pelo Ministério do Desenvolvimento Regional”, escreveu a auditora Lucieni Pereira. Diretora de Fiscalização de Planejamento e do Orçamento Governamental, Lucieni apontou também possível afronta aos princípios de impessoalidade, imparcialidade e equidade na distribuição dos recursos e destacou que a lei proíbe a utilização das emendas para influenciar votos no Congresso.

‘Mistério’. Ao propor esclarecimentos, a área técnica do TCU observou que uma “noção inafastável de democracia” exige, segundo o pensador italiano Norberto Bobbio, um “governo de poder visível”, que tem como precondição a imparcialidade e a transparência que impregnam o texto da Lei Maior. “O autor (Bobbio), ao lembrar lições do político italiano Ruggero Puletti, repetiu que ‘nada pode permanecer confinado no espaço do mistério’.”

Além disso, o TCU destacou a ausência de transparência e rastreabilidade dos recursos. Como o Estadão mostrou, não é possível saber os autores das indicações para a celebração de convênios. O próprio Desenvolvimento Regional admitiu que os ofícios não estão públicos.

A auditora Lucieni Pereira afirmou que a distribuição de emendas parlamentares por ofício “não se demonstra compatível com o arcabouço constitucional vigente”. “Não é razoável supor que emendas parlamentares sejam alocadas – no ente central que deve ser exemplo para toda a Federação – a partir de centena de ofícios, sem que sejam assegurados dados abertos que permitam a comparabilidade e a rastreabilidade por qualquer cidadão.”

A unidade técnica destacou que o papel das emendas de relator-geral está relacionado à correção de erros ou omissões na proposta orçamentária. Diante disso, quer que o Planalto explique o que embasa a utilização tão ampla dos recursos. A representação frisou que a proposta de criação do RP 9 “foi de iniciativa do Poder Executivo”, conforme o Estadão mostrou. “A Mensagem Presidencial 638, que encaminhou o PLN 51/2019, foi acompanhada por Exposição de Motivos, assinada pelo então titular da Secretaria de Governo Luiz Eduardo Ramos”, disse.

Segundo a auditora, é preciso observar que a mudança na lei feita pelo Planalto “foi promovida com a finalidade de propiciar a distribuição de recursos por emendas, especialmente, no âmbito da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs)”, entre outros. A Codevasf é loteada pelo Centrão.

Obscuridade. A representação do TCU enfatizou que é fundamental uma análise sobre o uso das emendas de RP9 em relação ao Orçamento de 2020 e para o Orçamento aprovado de 2021. “As emendas de relator supõem a indicação de vultosos montantes de recursos centralizada numa única pessoa, o que propicia a adoção de critérios personalistas com o atendimento a interesses de terceiros inominados, e prejudica a transparência orçamentária, que é pilar da governança pública e do combate à corrupção”, ressaltou.

A representação da secretaria cita também outros processos em análise no tribunal com referência às reportagens do Estadão, entre eles, uma denúncia apresentada por deputados em posição de liderança na Câmara. Eles pedem que o TCU suspenda a aplicação de todos os valores de RP 9 pelo governo federal no ano de 2021 – a soma chega a R$ 18,5 bilhões. Esse pedido será analisado pela Corte separadamente.

‘Risco’. A auditora cita a denúncia dos parlamentares no ponto em que condena a execução preferencial de projetos escolhidos por “arranjos voltados para privilegiar apoio político” por inviabilizar pautas estruturantes de melhor “retorno” para a sociedade no longo prazo. “Esse risco de priorização inadequada de projetos se vincula à baixa transparência das propostas, cuja motivação é menos suscetível ao controle social.”

Procurado, o Palácio do Planalto não comentou a ordem do TCU para entregar dados.

Recursos

R$ 21,89 bi

é o valor sobre o qual o TCU cobra explicações; o montante foi manejado por diversos ministérios e inclui os R$ 3 bilhões da pasta do Desenvolvimento Regional que foram liberados para parlamentares aliados.