Título: Além do Fato: - O que restou: Vietnã , 30 anos depois
Autor: Pham Thi Hoai
Fonte: Jornal do Brasil, 30/04/2005, Internacional, p. A7

Hoje se completam 30 anos da queda de Saigon, marcada pelas cenas de desespero e combates filmada nos estertores da Guerra do Vietnã. Como nuvens flutuando no céu, essa guerra já estava lá quando nasci, em 1960. Não tinha como saber, então fui obrigado a conviver com ela, todos os dias, por 15 anos. Não fui uma criança infeliz: a maior parte das nuvens era rosa. Quando as nuvens de chuva surgiam, só realçavam mais as outras. Cresci no nordeste do Vietnam entre 1960 e 1970 e para mim a guerra era uma natural e até colorida parte da vida. Isso continuou mesmo quando bombas caíam em áreas de evacuação ou quando não reconhecia amigos e colegas de escola que haviam perdido braços ou pernas. A morte andou perto de mim, dizendo ¿vejo você amanhã¿. Parecia que, salvo alguma mudança, a guerra continuaria como as nuvens no céu.

Com a libertação de Buon Ma Thuot em março de 1975, as lições da manhã começaram a incluir estudantes ¿progressistas¿ cumprindo a honorável tarefa de afixar no mapa do país a pequena bandeira vermelha com a estrela amarela sobre as vitórias até aquele momento: Hue, 26 de março, Da Nang, 29 de março, Phan Rang , 16 de abril, Xuan Loc, 21 de abril.

O vermelho sobressaía no mapa. As bandeirinhas tomavam todo o Sul tão rápido que fiquei preocupado que não chegasse a minha vez de ir ao quadro. No dia 27 de abril, segurando uma bandeira improvisada com papel e escova de dentes sobre Ba Ria, chorei. Não eram lágrimas de vitória. Não sabia qual era o preço de vencer. Meu choro era de despedida. A guerra que conhecera acabava. E foi na minha vez a hora de anunciar o fim. O que a substituiria? O que restaria depois dela?

A primeira década, após a derrota americana na tomada de Saigon pelo exército do Vietnã do Norte, foi marcada pela continuação do sistema de subsídios que vigorou no conflito, pelo controle sobre a vida diária e pela linha-dura ideológica que já vinha dominando. Também foi marcada por atritos militares na fronteira Oeste com o Camboja e na Norte com a China. Isso e a continuação da Guerra Fria transformaram nossa recém-adquirida independência nacional em isolamento internacional e fizeram com que o país recentemente unificado ¿ do Norte ao Sul ¿ em um território marcado pela pobreza, atraso e pela repressão.

Vivendo em Hanói (a capital do Vietnã do Norte) durante o início dos anos 80, imaginava que poderia dar à luz um filho cuja biografia oficial começaria assim: ¿como nuvens no céu, a pós-guerra já estava lá quando nasci. Todos os dias olhava para o céu e via as nuvens cinzas...¿

Mas os anos 80 viram a introdução do Doi Moi, a renovação política. Custou aos vencedores dez anos para perceber que a vitória não é algo fácil de digerir. Em 1994, o embargo contra o Vietnã foi suspenso e a normalização de relações entre o país e os Estados Unidos se acelerou. Custou aos EUA vinte anos para que assinassem um tratado de paz com o seu próprio passado. Para Washington, hoje, a Guerra do Vietnã pertence à História.

Uma página resgatada a cada quatro anos, como um teste da moralidade e do espírito patriótico dos candidatos presidenciais. Ou, ainda, como ponto de comparação com outras guerras que os EUA estão lutando, ou mesmo com aquelas a serem lutadas no futuro.

Trinta anos depois, as pessoas dizem que a História deixou uma cicatriz, mas não descansa em paz. Não há razão para desenterrar relíquias não relacionadas ao presente. É preciso olhar para o futuro. Pertenço a um pequeno grupo de pessoas ¿ uma minoria, provavelmente ¿ que não pode dizer tal conclusão relaxado. Tanto tempo depois da guerra, aquela pequena bandeira pesa mais em minha mão do que nunca. Sim, a morte de 4 milhões de pessoas e 1 milhão de soldados pertence à História assim como milhões de órfãos e viúvas, as feridas físicas e psicológicas em dezenas de milhões, os 76 milhões de litros de veneno e as 13 milhões de toneladas de bombas e balas.

Mas o mais grave legado da guerra que quebrou recordes de desumanidade é duradouro simplesmente porque ela nunca foi incluída na lista convencional de legados de guerra que deveriam ser evitados.

O resultado do conflito no Vietnã foi uma vitória completa dos comunistas. A guerra foi o leite materno, a escola e o teste de campo do comunismo vietnamita. Isso providenciou justificativa histórica para a indispensável liderança do Partido Comunista, provendo-o do Mandato Divino. O comunismo encontrou uma rota especial para o trono vietnamita usando essa notável e sangrenta denominação. O mandato acabou, mas ela permanece. Até hoje, a legitimidade obtida nesses 30 anos é constantemente reiterada, repetidamente reafirmada, validada e endeusada. Os heróis da era da guerra continuam a monopolizar a autoridade em tempo de paz, a liderança militar da guerra está renascida como um controle autoritário.

O Partido Comunista sabe muito bem que enquanto as coisas podem mudar, o mito do Mandato Divino deve permanecer intacto, especialmente porque todos os outros elementos dessa ideologia foram traídos sem desculpa ou se revelaram falidos. Como pode a guerra ser consignada à História enquanto o mandato derivado dela se sustenta?

Trinta anos depois da guerra, todos os nossos valores básicos culturais perderam sua importância e as nobres idéias da ideologia comunista se tornaram uma piada. Nenhum espaço emergiu para os valores básicos democráticos ocidentais ou para as dimensões positivas da globalização moderna.

Em vez disso, enfrentamos a corrupção, a violação das leis, a perversão da moralidade e da dignidade, o colapso dos sistemas médicos e educacionais, o crescimento da desigualdade social, a bomba-relógio do conflito étnico e religioso, o perigo do caos em um grande e negligenciado país, a destruição ambiental, o empobrecimento da vida espiritual, a impotência da inteligência, a proibição de cooperação entre grupo sociais, a crise de crença e de esperança.

O sistema totalitário no Vietnã já teve tempo e suficientes oportunidades para provar que não tem mais a autoridade para resolver esses problemas do dilema pós-comunista. Pode a Guerra do Vietnã ser posta no museu enquanto continua a vigora esse modelo no país através do futuro? É a ditadura um preço justo para a paz?

A Guerra do Vietnã não resultou no colapso dos Estados Unidos. Em vez disso, levou ao desaparecimento da República do Vietnã, uma nação que dominava metade do país de hoje e que tinha tanta legitimidade quanto seu irmão do Norte.

Nunca esqueci a imagem do general Nguyen Ngoc Loan, o chefe da polícia de Saigon, na famosa foto de Eddie Adams (na qual ele executa um vietcong preso com um tiro na cabeça). Mesmo depois de Adams ter pedido desculpas ao general pela foto, o episódio ainda recorda a bizarra tragédia descrita por Oriana Falacci depois que ela o entrevistou. Loan amava rosas, Brahms e Chopin e detestava sua carreira militar. Mas comparou um monge budista que se imolara durante um protesto a um cão drogado e disse que as destruídas crianças comunistas mereciam ser surradas.

Depois da libertação, no entanto, toda a sociedade do sul foi submetida à prisão, aos campos de concentração, à perda de propriedade, à discriminação contra as crianças mestiças, o expurgo de intelectuais, a destruição e a proibição da cultura do Sul, a completa eliminação de inúmeras carreiras e vidas. Não foram ações de vencedores de direito. Nem evidenciaram a superioridade do novo regime em relação ao inimigo recém-aniquilado.

Trinta anos depois da guerra, o país nunca tomou ciência real do doloroso êxodo de milhões de vietnamitas do Sul. Isso ocorreu como se não fossem mais vietnamitas e tivessem sido expatriados de uma nação unificada. Isso ocorreu porque o país unificado pertencia a um só grupo de vietnamitas, mas não ao outro. Isso ocorreu como se acreditassem que o sentimento nacional pudesse crescer naturalmente saindo desse profundo buraco da divisão e do ódio como pé de arroz nascendo numa trincheira.

É fácil dizer: as feridas da guerra estão começando a se curar, não tente remexê-las. Mas não é um ferimento, é um tumor para o qual o tempo não trouxe cura milagrosa. Ao contrário, a guerra surgiu da divisão nacional. Poderia ela continuar 30 anos depois? Vietnamitas e americanos hoje apertam as mãos, mas vietnamitas se recusam a oferecê-la a outros vietnamitas. Como pode? (Open Democracy)