Título: Reflexões sobre o papado
Autor: D. Eugenio Sales
Fonte: Jornal do Brasil, 30/04/2005, Outras Opiniões, p. A11
Assumiu especial importância o sepultamento de João Paulo II, o Grande, no contexto de sua extraordinária repercussão em todo o mundo, e em vista da escolha de seu sucessor, o Cardeal Josef Ratzinger, que tomou o nome de Bento XVI. Isto nos faz refletir sobre os princípios e fundamentos do Papado.
Jesus constituiu um grupo de doze, o que os sinóticos (Mc 3,16-19; Mt 10,2-4; Lc 6,14-16) relatam com grande insistência. João supõe-o como fato pacífico e comumente conhecido (Jo 6,67). Paulo, que não faz parte dos ''Doze'', conhece e reconhece a sua existência e a sua autoridade fundamental na Igreja (cf. 1Cor 15,5). A identidade deste grupo, criado por Jesus após ''uma noite inteira em oração'' (Lc 6,12), é claramente indicada em Marcos (3,14s): ''Jesus constituiu Doze, para que ficassem com Ele, para enviá-los a pregar, e terem autoridade para expulsar os demônios''. Eles serão o fundamento da Igreja: Jesus identifica a autoridade deles com a sua própria autoridade, e a missão dada a eles com a sua própria missão recebida do Pai: ''Quem vos ouve, a mim ouve, quem vos despreza a mim despreza, e quem me despreza, despreza aquele que me enviou'' (Lc 10,16).
Em todas as listas dos nomes dos doze, Pedro está em primeiro lugar. Nisto se vê que a Igreja, após a Páscoa, sem nenhuma hesitação, reconhecia a primordial autoridade de Pedro, membro dos Doze e ao mesmo tempo portador de uma distinção dada a ele pelo divino Mestre. Os exegetas observam que nos evangelhos e nos Atos dos Apóstolos, em 171 vezes, Pedro está sendo realçado na comunidade dos fiéis e entre os Doze. Ele fala pelo grupo todo. Também na Páscoa, Pedro é testemunha especial da ressurreição (cf. 1Cor 15,5; Mc 16,7; Lc 24,34; Jo 20,1-10).
Não somente após o evento pascal, mas já durante a vida de Jesus, Pedro toma freqüentemente a iniciativa. Por exemplo, após o grande sermão eucarístico, que se tornou escândalo para muitos dos ouvintes, Jesus desafiou os Doze: ''Não quereis também vós partir?''. Simão Pedro respondeu pelos outros: ''Senhor, a quem iremos? Tens palavras de vida eterna e nós cremos e reconhecemos que és o Santo de Deus'' (Jo 6,67-69).
Mas não se trata apenas da disposição de tomar a iniciativa antes dos outros apóstolos. O próprio Senhor Jesus o distingue e lhe confere uma eminente autoridade.
Jesus ao chegar a Cesaréia de Felipe pergunta aos Doze: ''Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?'' (Mt 16,13ss). Respondeu Simão Pedro: ''Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!'' Jesus respondeu-lhe: ''Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso, e sim o meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja, e as portas do Inferno nunca prevalecerão contra ela'' (Mt 16,16ss; Mc 8,29; Lc 9,20). E Jesus explicita mais ainda a função divinamente confiada a Pedro, acrescentando: ''Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos Céus'' (Mt 16,17-19). Com isto, Jesus não aboliu a função dada a todos os apóstolos de serem portadores de Sua palavra e de Sua autoridade, mas entre o grupo dos Doze, que é para sempre alicerce da Igreja, Pedro é a pedra com a qual todo o fundamento deve concordar. Ele é uma singular garantia da autenticidade da Igreja e da autenticidade do próprio Colégio Apostólico.
Após a ressurreição, Pedro assume então uma liderança que nenhum outro apóstolo disputa. Assim, na grave questão se o apóstolo traidor, Judas, devia ter um sucessor ou um substituto, Pedro toma a iniciativa, reconhecida pelos demais (At 2,14ss). Igualmente em frequentes outras circunstâncias, Pedro se mostra consciente de sua posição singular entre os Doze (At 3,12ss; At 4,8ss).
A missão de Pedro é de alcance universal, fundamento e garantia da Igreja. ''Sobre esta pedra construirei a minha Igreja'' (Mt 16,16ss). A palavra ''Igreja'', na tradução da Bíblia conhecida como ''Septuaginta Ekklesía'' corresponde à palavra hebraica ''qahal'', que é a ''reunião'', a ''comunidade de Iahweh''. Assim, Pedro não recebe apenas certa autoridade sobre uma comunidade particular, mas simplesmente sobre a ''comunidade de Iahweh'', reunida em Cristo e redimida por seu sangue, una e única na fidelidade à palavra de Jesus. Desta palavra, Pedro será, de modo peculiar, o guardião. O fato de os apóstolos coletivamente serem ''fundamento da Igreja'' (cf. Ef 2,20) não exclui, mas inclui a verdade de que Pedro detém uma função de critério para o Colégio dos Apóstolos. Jesus, conhecendo a debilidade humana de Pedro, confirmou a sua insubstituível função na Igreja: ''Simão, Simão, eis que Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como trigo; eu, porém, orei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça. Quando, porém, te converteres, confirma teus irmãos'' (Lc 22,31s).
Esses acontecimentos - morte e sepultura do Papa e escolha de um sucessor, à luz do Espírito Santo - ocorrem em um momento histórico, marcado pela agitação entre os povos e surgimento de novas doutrinas. A presença maciça de tantas autoridades no sepultamento de João Paulo II e as lágrimas e a angústia da humanidade documentaram a importância desse homem que, sob mandato divino, governou a obra de Cristo. Como substituí-lo, garantindo a continuação de seu papel a serviço da Igreja e do bem da Humanidade?
O novo Papa, Bento XVI, Josef Ratzinger, é um digno sucessor do grande João Paulo II. Com sua indefectível fidelidade a Cristo, demonstrada em tão significativo serviços à Igreja, e sua profunda espiritualidade, saberá conduzir a Igreja de Cristo internamente e na grande missão que ela detém frente à Humanidade.
A oração assídua em favor do novo Papa, Bento XVI, é sinal de vitalidade da fé cristã. O mesmo se diga da obediência filial ao novo Papa que recebeu de Deus o governo da obra de Cristo Jesus. Cremos firmemente que a barca de Pedro continuará a singrar serenamente os mares agitados de ontem, de hoje e de sempre. Sua vitória é assegurada pelo poder infinito do Senhor Jesus.