Título: Leonardo Boff
Autor: Aos órfãos da Igreja
Fonte: Jornal do Brasil, 29/04/2005, Outras Opiniões, p. A13

O longo pontificado de João Paulo II e os 23 anos do então cardeal Joseph Ratzinger à frente da Congregação da Doutrina da Fé imprimiram à Igreja Católica um curso claramente restaurador. Com isso se implementaram estratégias de contenção da Reforma Católica com medidas duras e algumas delas até altamente repressivas, como foi o desmonte da Igreja da libertação no Recife por um impiedoso canonista que veio substituir o maior Profeta do Terceiro Mundo, Dom Helder Câmara. Deste e de outros processos surgiram feridas, decepções, amarguras, críticas e incontáveis emigrações de cristãos, até dos melhores, que se recolheram em sua fé pessoal, quando não abandonaram, com tristeza, a Igreja. Quebrou-se o sentido de fraternidade dentro da Igreja e se criou um ambiente de desconfiança generalizada. O mais lastimável foi o escândalo e o sofrimento dos pobres que não podiam entender como o Papa e muitos bispos trabalhassem no mesmo canteiro de seus opressores e assistiam impassíveis à difamação e à perseguição daqueles que os animavam a viver o evangelho de forma libertadora, enjados nas mudanças sociais por dignidade e justiça sem deixar de rezar, batizar, celebrar missa, dar catequese, fazer casamentos e enterrar seus mortos. Algum marxista faz isso? A igreja pode se inimizar com os poderosos mas não pode escandalizar e fazer sofrer os pobres porque então ela estará traindo diretamente a herança de Jesus. E quem faz isso, pouco importa sua pretensa aura de santidade, terá que responder seriamente diante do juízo de Deus.

Mas a grande maioria permaneceu na Igreja, não obstante o sofrimento e a tristeza. Entretanto, não a viviam mais como lar espiritual. A Igreja é vivida como lar espiritual quando o cristão tem alegria de frequentar a comunidade, vive uma experiência de encontro com Deus (espiritualidade), sente os apelos do evangelho em favor dos mais necessitados, percebe que possui lideranças que amam mais do que controlam, que incitam à coragem e combatem o medo e que em Roma vê governar um Papa que o enche de orgulho por aquilo que ensina e testemunha na publicidade do mundo inteiro. Por razões conhecidas tudo isso se tornou confuso.

Como consolar os órfãos da Igreja e pedir que regressem ao seu seio? Creio que a primeira tarefa do atual Papa é realizar este gesto de magnanimidade. E eu, por minha parte diria: o primeiro a se fazer é relavitizar as coisas, por mais que Bento XVI tenha horror a esta palavra. A começar pela Igreja. Mais importante que ela é a humanidade e o Reino de Deus. O Reino é a utopia de Jesus de um mundo que tem um fim bom onde os ideais de todos os revolucionários vão se concretizar: a justiça e direito para todos e a vida sem fim, o verdadeiro lar e a pátria da identidade humana, com Deus. Estão dentro do Reino, primeiro os pobres e seus aliados, todos que têm sensibilidade pelos que padecem fome, sede, estão nus e encarcerados. Depois vem a fé, a esperança e o amor, virtudes que cada ser humano pode cultivar e é o que, na verdade, o salva. E só então vem a comunidade dos que crêem em Jesus, aquilo que chamamos Igreja. Esta se institucionaliza mas ela não consegue conter o Ressuscitado e o Espírito que agora têm dimensões cósmicas e a todos tocam respeitando seus caminhos próprios. Aqui não há orfãos. Todos somos da Casa de Deus. Depois de sabermos disso não há por que sentirmo-nos tristes, exilados e órfãos.