O Globo, n. 32799, 26/05/2023. Opinião, p. 2

E se a boiada passar mais fácil com Lula?

Vera Magalhães


O governo Lula 3 está diante de um dilema crucial: qual será o escrutínio da História se, ao final dos seus quatro anos, a “boiada” da exploração econômica da região amazônica e da retirada de direitos dos povos indígenas tiver passado mais fácil do que quando Jair Bolsonaro tentou?

O perigo existe, e se deve ao fato, paradoxal que pareça, de não haver, hoje, a verborragia tóxica de Bolsonaro e a sem-cerimônia de um Ricardo Salles a chamar a atenção para os riscos.

Também outro fator pode colaborar para facilitar que o Congresso e até o Judiciário se sintam mais à vontade para avançar: com Lula no poder, os ativistas não são tão eloquentes em protestar, mesmo para os fóruns internacionais, que os direitos dos povos originários e a preservação ambiental estão sob ataque.

Foi um poderosíssimo cacique do Congresso que me alertou sobre a possibilidade, que não estava no radar até há poucas semanas, de ser agora o momento “ideal” para consagrar o marco temporal para a demarcação de terras indígenas.

Diante da objeção de que, ao investir nesse caminho, já ensaiado com a aprovação de um texto alterado da Medida Provisória que estabeleceu a nova configuração do governo, o Congresso ignora que as urnas consagraram outro projeto ao eleger Lula, esse profundo entendedor dos desígnios do Legislativo retrucou:

— Mas elegeu por quanto? 80% a 20%? Não, foi 51% a 49%, quase empate.

Eis o nó da questão. Esse placar perseguirá Lula enquanto ele não conseguir nas pesquisas de popularidade uma dianteira maior sobre o bolsonarismo — que não morreu nem com os atos terroristas de 8 de janeiro nem diante da revelação de todos os rolos do ex-presidente e sua família — e, no Congresso, uma maioria parlamentar digna do nome. As duas coisas parecem longe de estar sequer sendo buscadas com método.

Perdido em querelas externas que nada rendem em termos de imagem, chegando atrasado aos assuntos polêmicos que dividem sua própria equipe, como a negativa para a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas, e distante do dia a dia da costura política, que hoje depende mais de Arthur Lira que do time palaciano para obter êxito, Lula passa a impressão de estar dissociado da realidade difícil de sua governabilidade.

A ênfase num programa que tenta resgatar o carro popular, enquanto o Congresso se prepara para aprovar o marco temporal, a CPI do MST fustiga a imagem do governo junto a um eleitorado de centro-direita e ministros se digladiam em comissões do Legislativo, mostra que nem agora, passados cinco meses de gestão, o presidente se dá conta de que o Brasil e o mundo mudaram, e o que era bom lá atrás não garantirá a ele 80% de popularidade, como já chegou a ter.

O modelo de coalizão também está longe de ser o ideal. Nem a distribuição de ministérios se mostrou capaz de fidelizar bancadas, à esquerda ou à centro-direita. Nem mesmo a distribuição de emendas, modalidade defendida por Lira, será capaz de evitar novas derrotas em pautas ideológicas ou progressistas.

Nesse cenário, as primeiras vítimas são as pastas do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, cujas titulares, nunca por acaso, são uma mulher negra e uma indígena. As duas foram chamadas para uma conversa com Lula hoje. O que será possível dizer para explicar o fato de o PT do Senado ter comemorado com um “Vitória!” a MP que tratou de desidratar os dois ministérios?

E como Lula convencerá Marina a voltar atrás em relação à decisão do Ibama de não facilitar a exploração de petróleo na Margem Equatorial, algo em linha com o que ele próprio prometeu na campanha, a despeito do histórico de desavenças entre ambos?

Vêm aí, ainda, a Ferrogrão, cortando a Amazônia, um Plano Safra porque o agronegócio está ávido, o asfaltamento da BR-319 e muitos outros projetos mostrando que o caminho para a boiada está livre.