O Globo, n. 32799, 26/05/2023. Política, p. 10

Passa boi, passa boiada

Ana Lucia Azevedo
Davi Ferrreira
Pâmela Dias


Se for levado adiante, o afrouxamento das regras ambientais, aprovado pela Câmara de Deputados na quarta-feira, vai colocar em risco a segurança climática, hídrica e alimentar da maioria dos brasileiros. Os “jabutis” (acréscimos que não têm relação com o texto original) incluídos na MP da Mata Atlântica, cujo objetivo era proteger o bioma, abrem caminho para a destruição do que restou deste ecossistema, que hoje já está reduzido a 12,4% da cobertura original.

Cerca de 72% da população do Brasil vivem no chamado domínio da Mata Atlântica.

— Não existe parte mais vulnerável, todo o bioma é ameaçado pela decisão do Congresso. É um ataque à realidade e à sociedade. Agravará a crise climática e de biodiversidade, eliminará recursos dos quais a maioria dos brasileiros depende e violará a já consolidada Lei da Mata Atlântica —destaca o advogado e ex-deputado federal Fabio Feldmann, autor da Lei da Mata Atlântica e responsável pelo capítulo sobre Meio Ambiente da Constituição brasileira. —Se não for vetada, veremos suas consequências em mais desastres, como o que devastou o litoral de São Paulo este ano.

A Mata Atlântica, que permitiu ao país se desenvolver e existir, é hoje uma colcha de retalhos de matas. Mesmo com o desmate, ainda garante água, ameniza o calor das cidades,reduz o risco de secas, inundações e desmoronamentos e mantém a fertilidade do solo, a polinização e o regime hídrico dos quais dependem a agricultura, salienta Carlos Grelle, co-organizador do livro “The Atlantic Forest: history, biodiversity, threats and opportunities of the mega-diverse forest (Ed. Springer)”, obra que reúne o estado da arte do conhecimento sobre o bioma.

Os 12,4% registrados pelo “Atlas dos Remanescentes Florestais”, do SOS Mata Atlântica e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), incluem todos os fragmentos com mais de 3 hectares. Apenas 8,5% dos pedaços que sobraram do bioma têm mais de 100 hectares. A maioria dos fragmentos está isolada e, com isso, ano a ano perde biodiversidade.

Com as mudanças feitas na MP 1.150, fica permitida a derrubada floresta sem estudo prévio para a implantação de linhas de transmissão de energia, gasodutos e sistemas de abastecimento de água. Outro jabuti acaba com a necessidade de zonas de amortecimento e corredores ecológicos para unidades de conservação em áreas urbanas. O problema é que muitas das UCs estão dentro ou próximas a alguma área urbana, mais suscetíveis à pressão imobiliária.

— Unidades de conservação protegem não somente plantas e animais; protegem pessoas. Temos pouquíssima proteção e ainda querem acabar com o que existe —critica Feldmann.

Disputa por terras

Por fim, a Câmara ainda aprovou o fim da necessidade de compensação para desmatamento fora de áreas de preservação permanente, o que facilita a derruba da mata original ou em estágio avançado de regeneração. Também acabou com a exigência de parecer técnico estadual para desmatamento em áreas urbanas, transferindo a atribuição para os municípios, que em sua totalidade nem têm estrutura para isso.

A MP também enfraquece o Código Florestal ao postergar o prazo de adequação ambiental e, com isso, deixa em suspenso a restauração de 20 milhões de hectares de florestas (incluindo outros biomas).

No mesmo dia, parte da bancada do governo silenciou sobre o pedido de urgência para a votação do Marco Temporal, que foi aprovado, desgastando uma pauta indígena que foi bandeira da campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Primeira ministra dos Povos Indígenas do país, pasta criada por Lula, Sônia Guajajara disse em seu perfil no Twitter que se trata de ameaça de “genocídio” para tribos do país. A reação de Guajajara acontece num momento de “fritura” da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que se posicionou contra a exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Com Lula na reunião do G7 no Japão, o Ibama negou licença à Petrobras.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) estima que o Marco Temporal — que prevê direito à terra para os indígenas que a ocupassem em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição —terá impacto negativo sobre quase 100% das áreas reivindicadas, muitas em litígio até hoje. O estrago não atingiria só terras em processo de demarcação quanto aquelas que tenham sido homologadas após o texto constitucional.

— Cerca de 95% das áreas homologadas e em processo de homologação podem ser afetadas —explica o advogado Rafael Modesto, assessor jurídico do Cimi. — Muitos desses povos quando reivindicavam suas terras não estavam mais nelas por terem sofrido desapropriação.

Há 1.393 terras indígenas no Brasil, das quais 871 (62%) seguem com pendências de regularização e 598 são áreas reivindicadas por povos indígenas. Até hoje, apenas 437 foram homologadas.

Coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá disse estar indignado e acusou os deputados de afrontar direitos fundamentais dos povos:

— A proposta anti-indígena do Congresso só vai tensionar ainda mais os conflitos e aumentar a insegurança de indígenas.