Título: A eleição e a nova diplomacia sul-americana
Autor: Flávio Leão Pinheiro
Fonte: Jornal do Brasil, 02/05/2005, Internacional / Além do Fato, p. A7

Hoje, fato inédito, mas não inesperado, ocorre na diplomacia das Américas: pela primeira vez a Organização dos Estados Americanos (OEA) terá como secretário-geral um candidato que não recebeu o apoio dos EUA, o socialista chileno José Miguel Insulza. A previsibilidade do resultado pode ser atribuída a dois fatores: ao desleixo com que Washington vem tratando a região, especialmente no governo Bush, e aos novos arranjos políticos domésticos que emergiram na América do Sul nos últimos anos. Uma primeira eleição foi em 11 de abril. Insulza concorreu com o mexicano Luis Ernesto Derbez. A eleição resultou em desfecho inesperado. Após cinco rodadas de votação com empates consecutivos, a contenda foi adiada para 2 de maio, na esperança de que, até lá, a região chegasse à consenso. Após o impasse, no entanto, a disputa ficou mais acirrada. Nem Insulza nem Derbez se prontificaram a retirar a candidatura. Mas a articulação chilena com parceiros do Sul se saiu melhor.

A fase final das negociações teve que passar pelo crivo americano, é claro. Afinal, o país financia 60% do orçamento da instituição ¿ cerca de US$ 45 milhões. Se os EUA não apoiassem, no entanto, correriam o risco de ver a OEA ainda mais desacreditada e deslegitimada, além de perder mais influência na região.

De fato, esse foi o primeiro desafio político da diplomacia sul-americana, arranjo político que teve como marco a criação da Comunidade Sul-americana de Nações (CSN), no fim de 2004. Digo primeiro desafio porque, enquanto a eleição de Insulza mostrou que a região pode se organizar politicamente, deixou também à vista os empecilhos e as complexidades das relações intra-regionais, que, se não forem superadas, jamais permitirão uma integração regional plena.

A recente tentativa de se criar uma articulação política na América do Sul teve como principal protagonista o Brasil. Durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso foram dados os primeiros passos. Em 2000, ocorreu em Brasília a I Reunião de Presidentes da América do Sul. De início, a agenda era basicamente marcada por questões comerciais e de infra-estrutura. Em 2002, os presidentes se encontraram novamente no Equador, na segunda reunião. Apesar de a agenda ser visivelmente pragmática, calcada no comércio, já existia a idéia de integração gradual.

Mudanças políticas domésticas nos países sul-americanos foram decisivas na concessão de maior ênfase à América do Sul. Houve, claramente, maior dinamismo nas relações entre Argentina, Brasil, Chile e Venezuela ¿ isso não quer dizer que não haja problemas pontuais entre esses governos. E, o que era antes um projeto restrito ao comércio, mudou. Agora, pensa-se a região como um ator político no cenário internacional.

No Brasil, a principal mudança foi a posse do governo Lula, que concedeu especial atenção à região sul-americana. No que diz respeito ao contexto político regional, nota-se que a insatisfação da população com anos de reformas liberais conduziu ao poder setores mais progressistas, como o PT, o governo Kirchner, na Argentina, a Frente Ampla, no Uruguai, o PS, no Chile, e até levou à consolidação de Hugo Chávez na Venezuela. Em geral, governos que vêm tentando adotar uma política externa mais pragmática, críticos ao chamado Consenso de Washington e ao neoliberalismo. Ao mesmo tempo, compartilham diferenças, como a perceptível hostilidade da Venezuela e da Argentina diante dos EUA, do FMI e de algumas multinacionais, que contrastam com o pragmatismo brasileiro e chileno.

Em dezembro de 2004, no Peru, durante a III Reunião de Presidentes da América do Sul, foi criada a CSN. A Declaração de Cuzco prevê três sustentáculos: o político, determinando a cooperação entre os países membros em todas as áreas; o comercial; e o de integração física. Determina ainda o objetivo do grupo: usar melhor as aptidões regionais para fortalecer as capacidades de negociação e projeção internacionais. É nesse contexto que a eleição na OEA deve ser analisada; contexto no qual os países agem ¿ ou deveriam ¿ segundo os objetivos traçados pela declaração, com a ¿determinação de desenvolver um espaço sul-americano integrado nos aspectos político, social, econômico, ambiental e de infra-estrutura, que fortaleça a identidade própria¿.

Mas, de fato, o que representou para os envolvidos a prevalência do nome de Insulza para secretário-geral? Para o Chile, país considerado não afeito à integração regional, em virtude das relações com os EUA, da política liberalizante e da relação não-amistosa que mantém com os vizinhos, a campanha do governo chileno pode ser considerada um sinal de que o país está aberto a um maior diálogo com os sul-americanos. Apesar de não ter obtido consenso na região, deixou claro que a articulação política com Argentina, Brasil e Venezuela pode ser viável. Para os EUA, a ascensão do ministro socialista representa que é hora de rever a política para a região.

Para a nova diplomacia sul-americana, personificada na CSN, os sinais são mais ambíguos. Destaco dois aspectos: primeiro, foi um importante processo para demonstrar quão complexa é a relação entre os países. A oposição da Colômbia, da Bolívia e do Peru, somada à relutância do Paraguai em apoiar o candidato chileno, corrobora a afirmação. Segundo, apesar de, à primeira vista, a articulação política ter superado a hegemonia americana na OEA, angariando apoio até de países fora da América do Sul, o resultado está longe de atender as demandas regionais e de cumprir as metas da declaração de Cuzco: cooperação política e comercial e ênfase à integração física. Para o cumprimento dessas metas, o caminho é longo e árduo, especialmente se considerados os recentes empecilhos regionais que.

Destaco três questões que se encontram pendentes. A primeira, de maior importância, é a integração física. Embora o tema infra-estrutura tenha sido a pedra angular do discurso integracionista no início da década, ele está cada dia mais distante da concretização. Um exemplo é a crise energética por que passam o Chile e a Argentina. Não fosse a falta de investimentos em infra-estrutura regional, a crise não estaria representando ameaça ao crescimento econômico. O segundo ponto é a articulação política ¿ o que contrasta com a eleição de Miguel Insulza. Os membros do Mercosul, por exemplo, não chegaram a um nome de consenso para concorrer ao cargo de diretor geral da Organização Mundial de Comércio. Outro fato que chama a atenção é o desacordo entre Brasil e Argentina sobre a reforma da ONU e à postulação brasileira à vaga permanente no Conselho de Segurança. Por fim, o último empecilho à integração é a instabilidade institucional de alguns países, com o exemplo da crise no Equador.

*Pesquisador do Observatório Político Sul-americano (Opsa)/Iuperj