Título: As filas da vergonha
Autor: Israel Tabak
Fonte: Jornal do Brasil, 01/05/2005, País, p. A2

Na Rua Monsenhor Alves da Rocha, em Ramos, a poucos metros da Avenida Brasil, são 5h35 da madrugada e kombis clandestinas, sem qualquer letreiro, já estão passando, uma após outra anunciando o itinerário com potentes alto-falantes. O escandaloso desrespeito à Lei do Silêncio não é suficiente para provocar reação, nem de quem fica na calçada esperando condução, nem dos que são acordados todo dia com o barulho, e muito menos das pessoas que estão na fila do Centro de Atendimento ao Contribuinte, da Receita Federal. Assim como a rotina do transporte clandestino e barulhento se espalha por vários bairros nas madrugadas do Rio, as filas nos postos da Receita e do INSS também começam a se formar cedo ¿ e isso há décadas ¿ apesar das reiteradas promessas garantindo o fim do suplício. Nos rostos cansados e resignados de quem é obrigado a ir para a fila, uma certeza parece transparecer o tempo todo: não adianta reclamar de quem faz barulho de madrugada, e muito menos das repartições federais incapazes de prestar um atendimento decente. Simplesmente porque esses segurados ou contribuintes jamais conheceram uma situação diferente.

A doméstica Roseli Balbino, 38 anos, renitente freqüentadora das filas do posto do INSS da Rua Joaquim Gomes, em Ramos, costuma levar a sua cadeirinha, ajudada pelo filho menor ¿ mais um a perder noites de sono ¿ e se refugia na leitura da Bíblia. Às voltas com problemas do coração e crises de pressão alta, e enquanto o benefício demora a sair, ela enfrenta o sacrifício das madrugadas meditando sobre os trechos que falam dos falsos profetas: ¿ A Bíblia diz que o povo não se deve deixar enganar pelos falsos profetas ¿ adverte Roseli, da Assembléia de Deus.

Não muito longe dali, no posto da Receita, na Penha, as portas só vão se abrir às 10h, mas é freqüente a fila se formar antes das 5h, como conta o despachante Gilcimar Jesus da Silva, o primeiro a chegar. A razão para tão longa espera é espantosa: é freqüente serem distribuídas apenas três senhas por dia para um dos atendimentos mais comuns: o dos contribuintes que cometeram algum erro em pagamentos e querem regularizar sua situação. Isto significa que, se, de madrugada, estiverem na fila quatro pessoas nessa condição, a quarta terá perdido uma noite de sono à tôa.

Situações como esta explicam porque, rotineiramente, tanto no INSS quanto na Receita, aparecem pessoas que inauguram as filas, dispostas a negociar o lugar por preços que variam de R$ 10 a R$ 50, como acontece em alguns postos da Zona Sul. Uma forma extrema de reforçar o orçamento familiar às custas da ineficiência estatal.

O mercado paralelo tem outras facetas. Na Penha, de madrugada, duas carrocinhas aproveitam o sono ou a fome dos segurados para também faturar: vale um cafezinho bem forte ou até um misto quente a R$ 1, para enganar a barriga de quem não vai poder voltar para casa tão cedo. Eliane Araújo, dona de uma das carrocinhas, conta que tem gente que chega à meia-noite para dormir em frente à porta de entrada, esperando o posto abrir, às 8h.

Antonio Elias Soares aluga a R$ 0,50 em torno de 30 banquinhos de plástico por madrugada para quem não consegue ficar em pé tanto tempo. Mas garante que quando a pessoa é idosa e não tem dinheiro não cobra nada. Já acostumado aos problemas mais comuns enfrentados pelos segurados e diante das queixas de mau atendimento, garante que tem informações melhores do que ¿muito funcionário lá dentro¿. O cartaz afixado na porta de vidro não deixa dúvidas sobre a ditadura burocrática: mesmo para uma simples informação, o segurado é obrigado a enfrentar a fila.

A madrugada na calçada gera a sua própria lei: os maridos não costumam deixar as companheiras virem sozinhas para o posto quando ainda é noite. Por isso, Severino Antonio da Silva já acompanhou mais de 10 vezes a mulher, Odete, que tenta se aposentar. Explica:

¿ Ela tem medo de assalto.

O temor procede. O inspetor de alunos Heram Almeida foi assaltado a caminho do posto: perdeu R$ 85 e teve que ficar em pé. Não sobraram nem R$ 0,50 para alugar o banquinho e esperar sentado a hora de ser atendido. Do INSS, ele queria muito pouco: apenas apanhar a carteira de trabalho retida no processo de aposentadoria.

Mas se é só para isso, por que madrugar ao relento? É que a repartição fecha cedo, às 15h. Para quem trabalha e não pode chegar antes desse horário, só resta o castigo comum: a fila.

O martírio imposto a segurados e contribuintes é indiferente a partidos e plataformas políticas. Nem leva em conta o fato de que o INSS e a Receita são responsáveis por 98% do que a área federal arrecada. Quem quiser regularizar sua situação, por exemplo, quitando contribuições atrasadas ou corrigindo um pagamento indevido, nem por isso vai ser melhor tratado nas duas áreas. A fila nasceu para todos.

Essa contradição não foi suficiente para arrefecer o projeto federal de unificar a arrecadação dos dois setores, com o objetivo declarado de racionalizar a máquina arrecadadora. O que pressupõe tratar bem não só quem quer pagar mas quem tem o que receber. Para estes, sobretudo, as indas e vindas costumam virar tempo perdido em labirintos kafkianos.

A fila da perícia, no INSS, por exemplo, é uma sucessão de lamentos. A faxineira Janete Paiva diz que está vivendo da caridade de amigos e vizinhos.

Mostra o braço torto, atrofiado (¿a cãimbra na ponta dos dedos não passa¿), resultado de um engessamento mal feito depois que caiu de uma escada, numa escola. Inutilizada provisoriamente para o serviço, Janete não consegue ganhar o benefício e resiste a tirar o filho da escola (¿ele está indo muito bem¿), para que comece a trabalhar.

Uma das primeiras a chegar e a ser atendida, Janete sai desconsolada, como das outras duas vezes em que procurou o posto.

¿ Me deram mais uma lista de documentos para tirar ¿ reclama, mostrando um papel com siglas incompreensíveis.

A revolta de Valter Correia da Silva ainda é maior. Avisa que vai entrar com recurso contra a perícia que o considerou apto para o trabalho ¿ é vigilante ¿ embora só consiga se locomover de muletas.

¿ Um vigilante tomando conta de algum lugar com muletas. É um absurdo ¿ brada Valter, que após um acidente sofreu fraturas múltiplas e não consegue dobrar o pé esquerdo.

A distribuição limitada de senhas para a perícia médica ¿ muitos segurados que chegam de madruagada não são atendidos ¿ é uma das queixas mais freqüentes, e a principal causa de surgir, periodicamente, gente que dorme em frente ao posto só para vender o privilegiado lugar na fila, com atendimento garantido. O posto abriu às 8h e quase duas horas depois ainda não havia chegado nenhum funcionário graduado em condições de dar explicações sobre as queixas dos segurados, segundo o vigilante que fica na porta. No saguão de acesso, o cartaz: ¿Você pode fazer sua Previdência melhor¿.

A perícia é, de fato, um dos principais gargalos do INSS, confirma a assessoria da presidência. O problema citado é o da carência generalizada de profissionais. Depois de 18 anos foi realizado há pouco o primeiro concurso que contratou 2.400 pessoas para todo o país, entre eles 1.500 médicos peritos. Nenhum deles, no entanto, ainda tomou posse. O ministro Romero Jucá não economiza palavras:

¿ Posso garantir aos segurados que providências estão sendo tomadas e que dentro de pouco tempo, espero até o fim do ano, a gente tenha uma nova sistemática de implantação, exatamente para dar condição de atendimento condigno às pessoas que procuram a Previdência.

O ministro acrescenta que grupos técnicos estão sendo formados com o objetivo de diminuir as filas, e também para incrementar o atendimento pela internet e pelo telefone gratuito (0800-780191).

Na fila da Receita, em Ramos, Rodrigo Almeida, despachante de um escritório de contabilidade, opina que lá ¿é ainda pior do que no INSS¿.

¿ Lá você fica o dia todo na fila, mas te dão uma solução. Aqui nem isso ¿ avalia, mostrando não conhecer muito bem o cotidiano do INSS.

Patrícia Coelho Afonso, chefe da Divisão de Atendimento ao Contribuinte, da Delegacia da Receita Federal do Rio, reconhece que o problema das filas é sério, assim como ocorre na Previdência.

¿ Temos um déficit de 2 mil técnicos da Receita. É urgente que o Ministério do Planejamento autorize um concurso ¿ prometido para este ano ¿ caso se queira enfrentar o problema.

Só um técnico da Receita Federal ¿ funcionário de carreira graduado ¿ pode operar em situações de maior responsabilidade, como a da correção de pagamentos feitos com algum tipo de erro. Como eles são muito poucos, as senhas para esses casos são restritas, gerando as queixas nas filas, explica Patrícia.

A técnica afirma que a legislação, muito rígida e complicada em certos casos, também ajuda a aumentar as filas e, por isso, deveria ser atualizada.

¿ A decisão é política, porque há pessoas poderosas, como alguns sonegadores, que não querem rigor e eficiência nem na Previdência nem na Receita. Isso contraria seus interesses ¿ alfineta.