Título: Apagão do Mercosul chega ao Uruguai
Autor: Augusto Nunes
Fonte: Jornal do Brasil, 04/05/2005, Internacional / Além do Fato, p. A7

A faixa de pano grosso que abarca as duas pistas da avenida balança furiosamente, espancada pelos ventos fortes que agitam as águas do Rio da Prata. Simultaneamente, a inscrição com letras enormes festeja a própria Montevidéu e saúda os forasteiros: ¿Bienvenido a la capital del Mercosur¿. ¿ Esses ventos vêm da Argentina ¿ informa o motorista de táxi Pascual Sorrento. No percurso entre o aeroporto de Carrasco e a Praça da Independência, conta que tem 35 anos e pouco interesse por assuntos políticos. Talvez saiba mais do que diz. A alusão à origem dos ventos não parece acidental.

Repito aos sussurros a frase na faixa. Ele ouve.

¿ Quer conhecer a sede do Mercosul? ¿ pergunta.

Logo estamos diante de um dos edifícios de contornos clássicos que conferem a Montevidéu traços europeus. Abrigava um hotel que sucumbiu às epidemias de políticos incompetentes, militares brutais e economistas insensatos que devastaram a a antiga ¿Suiça latino-americana¿. Restaurado, passou a hospedar o comando da organização concebida em 1991.

A formação no Cone Sul de um bloco semelhante à União Européia era um projeto partilhado por quatro países: Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Continua no campo da fantasia, como atesta o prédio submerso na escuridão. Sorrento diz que aquilo só pode ser conseqüência da escassez de energia, que tem obrigado o presidente Tabaré Vasquez, recentemente empossado, a promover cortes seletivos.

¿ É a primeira vez que vejo isso ¿ lastima Sorrento. ¿ Mesmo nas piores crises, ficava iluminado a noite inteira.

O prédio às escuras simboliza e resume o grande apagão do Mercosul, que pode acabar em frangalhos, como a faixa de boas-vindas. Os ventos pressagos não vêm apenas da Argentina. São também soprados pelo Brasil.

O Brasil quer ser o chefão, convencido de que nasceu para mandar neste pedaço do planeta. O Paraguai não conta: habituou-se a agir como uma espécie de província brasileira, que lucra com espertezas e malandragens. Mas a Argentina e o Uruguai não têm vocação para a subserviência. Cientes dos trunfos geopolíticos do Brasil, topam até ser sócios minoritários ¿ mas sócios. Mas reivindicam o tratamento respeitoso que não vêm recebendo. O presidente Nestor

Kirchner só está dizendo sem rodeios o que pensa também o uruguaio Vazquez. Qualquer calouro em Economia sabe que o Mercosul, se bem conduzido, chegaria sem sobressaltos a bom porto. As economias de cada país são complementares, eventuais assimetrias podem ser corrigidas com concessões e renúncias de parte a parte. Mas há no caminho duas pedras de bom tamanho: a arrogância do governo Lula e a insensatez beligerante da Argentina.

Se a obstrução da estrada principal continuar, em pouco tempo não haverá em Montevidéu nenhuma faixa de boas-vindas. E o prédio hoje às escuras será reduzido a tumba da idéia morta no berço pelo descaso dos pais.