O Estado de São Paulo, n. 46737, 03/10/2021. Economia & Negócios p.B1

 

Governo busca novo destino para lixo radioativo estocado em São Paulo

 

Impasse. A Indústrias Nucleares do Brasil, uma estatal federal, já se comprometeu a tirar 1.179 toneladas de resíduos hoje guardadas no bairro de Interlagos, na capital paulista; meta é levar os rejeitos para Itu (SP) ou Caldas (MG) – mas as duas cidades


André Borges 
 

O governo federal tenta encontrar destino para 1.179 toneladas de lixo radioativo que estão em galpões em Interlagos, na zona sul de SP. Itu (SP) e Caldas (MG) foram destinos cogitados, mas se negam a receber o material.

O governo Jair Bolsonaro, que a todo instante repete a promessa de erguer novas usinas nucleares pelo País, corre para encontrar um destino para armazenar nada menos do que 1.179 toneladas de rejeitos radioativos – um lixão nuclear que, para surpresa de muita gente, está hoje guardado em velhos galpões localizados no bairro de Interlagos, na zona sul de São Paulo. O material não poderá mais ficar no local, que é cercado por prédios residenciais, e terá de ser remanejado. A questão é para onde levar as centenas de tonéis de lata que guardam os rejeitos.

A estatal federal Indústrias Nucleares do Brasil (INB), responsável pelo lixão radioativo e dona do terreno em Interlagos, já manifestou sua intenção ao Ministério Público Federal de São Paulo de, preferencialmente, enviar o material para a pequena cidade de Caldas, município mineiro de 15 mil habitantes. A INB tem uma base em Caldas e já guarda rejeitos por lá. Uma segunda opção seria deslocar o lixo perigoso para a estrutura da estatal em Itu (SP). Só falta combinar com as cidades.

O lixão nuclear da INB virou praticamente um assunto proibido nos dois municípios, que não querem saber de virar depósito de rejeito radioativo. Os prefeitos prometem uma batalha contra a empresa. "A Prefeitura da Estância Turística de Itu, mesmo sem ter sido notificada oficialmente sobre esta intenção da INB, se opõe totalmente ao recebimento do material", disse à reportagem o prefeito Guilherme Gazzola (PL). "As instalações da INB em Itu ficam em um terreno que, em 1991, foi declarado área de proteção ambiental, o que torna a possibilidade da vinda desse material para a cidade ainda mais absurda."

Gazzola diz ainda que, assim como o município mineiro, Itu é uma estância turística e tem neste setor uma de suas principais atividades econômicas. "A vinda de rejeito radioativo só causaria

reflexos negativos para Itu, que vive um momento de franco desenvolvimento urbano e econômico. O poder público municipal declara que se mobilizará de maneira rígida para impedir qualquer ação neste sentido."

A resistência ao plano da estatal ganha traços ainda mais fortes quando se trata de Caldas. A cidade é o destino preferido da INB, porque já abriga uma boa quantidade do mesmo lixo nuclear em suas dependências. "A

INB nunca respeitou o município e tem uma péssima relação com a cidade. Não há nenhuma transparência sobre nada, sequer nos informam sobre a qualidade da água que tratam aqui. Agora, em vez de fazer o descomissionamento

(desmonte) da base deles na cidade, que prometeram, mas não fizeram, querem fazer de Caldas um depósito de rejeito", diz o prefeito Ailton Goulart (MDB).

Para tentar impedir que o plano avance, Goulart diz que vai acionar o governo estadual, INB, Ibama e Ministério de Minas e Energia para tentar derrubar o projeto. "A INB nunca pagou nenhum royalty pelo que faz no município, isso sem contar que temos um alto índice de câncer na região. A gente sabe que são péssimas as condições de armazenagem aqui, mas eles nem mandam relatórios para nós. Então, não vou aceitar isso de forma passiva. O que eu puder fazer para impedir esse lixo de vir para o município, vou fazer", afirma o prefeito, que é nascido e criado em Caldas.

Contagem regressiva. Sem saber qual será o destino de seu rejeito radioativo, a INB tem de iniciar o plano nos próximos meses, que inclui a preparação de uma área específica, com infraestrutura para guardar esse tipo de material. Seja qual for o destino, a estatal pretende liberar a área de Interlagos até 2025. Para isso, já começou a fazer o processo de descontaminação da área externa do terreno de 60 mil m². Quando liberar o espaço, este será entregue à Prefeitura, para uso irrestrito.

Das 1.179 toneladas de rejeitos radioativos guardados nos galpões de Interlagos, 590 toneladas são do material conhecido pelo nome de "Torta II". O restante inclui resíduos e materiais diversos associados a esse produto. A Torta II é um rejeito extraído no tratamento químico da monazita, um fosfato que combina metais pesados de terras raras, urânio e tório. Esse material pertencia à antiga empresa Nuclemon, a Usina de Santo Amaro, que funcionava em São Paulo até os anos 1980. Com o fechamento, todo seu rejeito foi transferido para a INB, que distribuiu o lixo radioativo entre Caldas e o bairro de Interlagos.

Atualmente, a unidade da INB em Caldas armazena 12.534 toneladas de Torta II, quase 11 vezes o volume guardado nos galpões de Interlagos. A cidade mineira aguarda, na realidade, o desmonte e a retirada do material de seu território, e não o aumento do lixo confinado ali.

 

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Caldas é local mais adequado para resíduos, afirma estatal

Instalações na cidade dispõem de 'condições apropriadas' para monitoramento de rejeitos, afirma a INB
A.B.

 

A Indústrias Nucleares do Brasil (INB) procura minimizar a discussão e diz que o destino do lixão radioativo está em aberto, apesar de defender que a cidade de Caldas seria o melhor caminho para guardar o material de Interlagos.

Em resposta enviada à reportagem, a INB declarou que a unidade mineira "dispõe de condições apropriadas para a monitoração dos rejeitos e resíduos ali armazenados", pois tem "dois laboratórios adequados e recursos humanos especializados, aptos à correta gestão dos resíduos".

A destinação final, porém, segue em aberto. "A INB estuda as opções possíveis e, assim que tiver uma proposta, irá submeter a solução que julgar mais adequada à aprovação dos órgãos fiscalizadores, que são o Ibama e a Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear). Nenhum material será transferido sem que previamente seja apresentada e discutida a solução com todas as partes envolvidas", afirmou.

O Estadão questionou a INB se a estatal avalia a possibilidade de enviar o lixo radioativo para a sua base em Caetité (BA), onde explora a maior jazida de urânio da América Latina e extrai o material para produzir as pastilhas de urânio das usinas nucleares de Angra (RJ). A companhia declarou que "Caetité é uma unidade em produção" e que "não se considera esta hipótese."

Não é de hoje que a situação do armazenamento de lixo radioativo em Caldas é criticada pelo município, que reclama de condições precárias na guarda do material. No fim de 2017, o Tribunal de Contas da União fez uma auditoria nos gastos com depósitos da INB em Caldas, Itu e em São Paulo para averiguar as condições de segurança e uso dos recursos públicos nestas ações.

O trabalho constatou "condições inadequadas de guarda do material Torta II" em Caldas, que exigiam "adoção imediata de medidas mitigadoras pela INB". O relatório destacava ainda que, apesar de encontrar "armazenagem de material radioativo de forma inadequada", verificou que a Cnen, responsável pela fiscalização dos depósitos, "aponta as inconformidades reiteradamente, mas a INB, responsável por corrigir as inconformidades, não adota as providências necessárias".

Questionada sobre o assunto, a INB afirmou que "trabalha na direção de promover melhorias nas condições de armazenamento de resíduos" em Caldas. A estatal declarou que "muitos destes serviços foram inicialmente previstos para o ano de 2020, mas tiveram que ser adiados devido à pandemia".

A estatal declarou ainda que vai construir um "novo ponto de controle de acesso à área de estocagem de Torta II" em Caldas, com a substituição das coberturas dos silos de concreto, além de melhoria nas condições dos materiais embalados, ação prevista para ser iniciada em dezembro deste ano.

 

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Documento indica queixa por proibição a lixo tóxico

A.B.
A Indústrias Nucleares do Brasil (INB) não esconde a sua preferência em enviar as 1.179 toneladas de rejeitos radioativos para a sua unidade de Caldas. Em documento enviado em dezembro de 2020 ao Ministério Público de São Paulo, a INB afirma que a retirada do lixão nuclear de Interlagos e seu transporte para Caldas, em Minas Gerais, são "a hipótese considerada pela INB como a ideal". A estatal reclama, porém, de "decreto do Estado de Minas Gerais (40.969/2000), que proíbe o ingresso, no Estado, de rejeito radioativo". O referido decreto foi assinado no dia 23 de março de 2000, pelo então governador Itamar Franco, que morreu em 2011.

A estatal avalia construir, em Itu (SP), onde já armazena rejeitos radioativos, uma nova instalação. "Nesta hipótese ainda será um depósito intermediário, que antecederá a deposição prolongada dos rejeitos", afirma, no documento.

Ao defender o plano de levar os rejeitos para Caldas, a estatal afirma ainda que a ideia de "concentrar todo este material em um só local é, para a INB, a melhor solução", e o município mineiro seria o mais preparado para isso. "Em Caldas, existe toda a infraestrutura para a guarda segura dos rejeitos", diz o documento. "Outra vantagem, que reforça bastante esta proposta da INB, é o fato de a Cnen também dispor de uma excelente estrutura em Caldas, com laboratório e tudo o mais para o exercício de suas funções."

Ao comentar a situação atual do depósito em Caldas, a Cnen afirmou que "estão em andamento ações corretivas para recuperação de condições de armazenamento adequadas" e que esse trabalho tem sido monitorado e fiscalizado pelo órgão.