O Globo, n. 32798, 25/05/2023. Brasil, p. 11

'Free cannabis' em pauta

Lucas Altino


“Uma vez fui parado em blitz, mas no dia não tinha nada comigo. Tem lugares que é preciso fumar mais escondido. Sabemos de todo o preconceito e opressão que se perpetuam com a desculpa do combate às drogas em alguns territórios, principalmente com pessoas negras e pobres. Isso tem que acabar”. A frase do radialista Lucas Abreu, de 31 anos, que faz o chamado “uso recreativo” da maconha, resume a grande expectativa sobre o julgamento que pode descriminalizar o uso pessoal da maconha no Supremo Tribunal Federal (STF).

Ontem, a votação foi mais uma vez adiada na Corte, mas o debate está na mesa. A retomada do assunto mobilizou a bancada evangélica da Câmara de Deputados, que é contrária à mudança na lei. Integrantes do grupo se reuniram com a presidente do Supremo, Rosa Weber. A ministra ainda recebeu o ex-procurador Deltan Dallagnol (Podemos-PR), cassado pelo TSE na semana passada. Ao mesmo tempo, as percepções dos usuários, somadas às muitas camadas do debate, que vão de questões sociais a jurídicas, esquentam a polêmica em torno da legislação brasileira que proíbe o uso de drogas, ao contrário de outros países.

Pequena dose predomina

Pesquisa inédita do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que analisou 5.121 processos sobre tráfico em tribunais de todo o país, a que o GLOBO teve acesso, revela que os impactos no sistema carcerário podem ser maiores do que se esperava. Se a Corte arbitrar um teto de 25 gramas de maconha para uso pessoal, conforme voto do ministro Luís Roberto Barroso, 27% dos condenados por tráfico detidos com a substância teriam direito a reivindicar absolvição.

A pesquisadora Milena Karla Soar, do Ipea, diz que o resultado do trabalho foi surpreendente.

—O impacto é muito importante. Não sei se o STF vai decidir algum parâmetro de quantidade, mas nossa pesquisa indicou predominância de apreensões de pequenas quantidades —diz Milena Karla.

Com base em legislações internacionais e padrões de consumo nacional, o Instituto Igarapé sugeriu três parâmetros de quantidade que foram usados nas simulações do Ipea. Além do cenário conservador, o intermediário daria permissão para porte de 40g e o mais liberal, 100g. Nesses casos, o percentual dos que conquistariam direito a alegar inocência subiria para 33% e 48%, respectivamente.

No caso da cocaína, o teto conservador seria de 10g; o intermediário, 12g; e o liberal, 15g. Dos três ministros do STF que já deram seus votos, apenas o ministro Gilmar Mendes considera que outras drogas podem ser liberadas. O mais provável, de acordo com especialistas, é que a maconha tenha consenso, mas não se sabe se a quantidade autorizada seria predefinida ou se as autoridades de segurança avaliariam caso a caso.

A novidade também atinge as pessoas que, mesmo com direito legal de consumir a substância por questões de saúde, alegam sofrer constrangimentos. Moradora de São Luís, no Maranhão, a jardineira Teresa Gandolfi foi tomada pelo medo numa viagem de avião até São Paulo com a filha, que tem paralisia cerebral e epilepsia refratária. Ela, que sofre com ansiedade, também tem aval da Justiça para usar maconha.

—Se for descriminalizado, o que vai mudar para mim é o que mais me perturba hoje: sentir medo. Mesmo com um habeas corpus, se eu for pega com maconha na rua, o que o policial vai fazer? Precisamos parar de ser vistos como marginais —afirma Gandolfi, que fez pós-graduação em cannabis medicinal e mantém a página Mãeconheiras no Instagram com dicas de plantio e manejo. — Deu tudo certo na viagem, mas sofri e chorei nos dias anteriores. Tive medo de minha filha perder os exames.

O STF deve remarcar a retomada da votação que pode derrubar o artigo 28 da lei 11.343 ( a lei federal antidrogas), que penaliza o usuário. Gilmar e os ministros Barroso e Edson Fachin consideram o artigo da lei inconstitucional. A ação foi movida pela Defensoria Pública de São Paulo, em 2015, após a condenação de um presidiário com três gramas de maconha.

Um dos votos mais esperados ontem era do ministro Alexandre de Moraes, que no passado já se manifestou pela erradicação da maconha na América do Sul. Esta semana, ao chegar para dar aulas na USP, ele foi surpreendido e reagiu com bom humor à faixa “Descriminaliza STF” deixada pelos alunos em sala.

— A expectativa é muito grande. Podemos viver um momento histórico no Brasil —afirma o advogado Ladislau Porto, que advoga para duas associações de cannabis medicinal.

Torcidas organizadas

Até mesmo grupos de torcidas organizadas se engajaram na batalha pela cannabis. Diretor do movimento Vasconha, Vinicius Santos conta que orienta os torcedores a não incomodarem crianças e famílias no estádio:

— Uma questão de saúde não pode ser resolvida na delegacia. A relação com polícia é muito difícil.

Por ser tratar de uma infração penal de menor gravidade, os usuários de droga não são presos, mas precisam assinar um termo de responsabilidade. De acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Brasil tem uma população carcerária de 750 mil pessoas, das quais 215 mil, ou 28% delas, foram condenadas pela Lei Antidrogas.