O Globo, n. 32797, 24/05/2023. Política, p. 4

Chumbo trocado

Gabriel Sabóia


Na primeira reunião após a escolha do presidente e do relator, a CPI do MST já deu uma amostra do roteiro que faz com que ela seja encarada pelo Palácio do Planalto como a comissão com maior potencial de desgaste político. Embates entre representantes da esquerda e da direita, com trocas de acusações e tentativas de vincular a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva a invasões promovidas pelo movimento, deram a tônica da sessão de ontem.

Oposicionistas, que compõem a maioria do colegiado, veem os trabalhos da comissão como uma oportunidade para pressionar o governo em diferentes frentes. Numa delas, planeja destrinchar os canais de financiamento do MST, na expectativa de encontrar algum laço entre o movimento e os petistas. Representantes da bancada ruralista também aproveitaram a largada dos trabalhos para expressar descontentamento com o Planalto.

Do outro lado da trincheira, a linha defensiva adotada pela tropa de choque de Lula será explorar investigações relacionadas a parlamentares que se opõem ao governo federal. Ontem, por exemplo, aliados do Executivo levaram para o debate a investigação da Polícia Federal que mira suspeitas de que o presidente do colegiado, Tenente-coronel Zucco (RepublicanosRS), teria estimulado atos antidemocráticos ocorridos após a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro na eleição do ano passado. Em alta temperatura, o segundo ato da comissão, instalada na semana passada, foi marcado por ataques mútuos entre seus integrantes.

Microfone cortado

Parlamentares governistas reagiram durante a sessão à notícia de que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que a Polícia Federal retome as investigações relacionadas ao Tenente-coronel Zucco, que ocupa um dos cargos mais estratégicos da CPI, ao qual cabe coordenar as reuniões. Anteriormente, o deputado gaúcho já havia dito que não era alvo de nenhuma frente de apuração em curso no momento.

A deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) ponderou, entretanto, que o fato merecia ser citado no colegiado. Ela ainda tinha direito a falar por 20 segundos, quando teve o microfone cortado pelo presidente da CPI.

— Para minha surpresa, o senhor está sendo investigado, mas já havia se esquivado das acusações. E agora? —questionou a parlamentar da base aliada.

Neste momento, ao ser confrontado diretamente, Zucco desligou o som:

— Isto não será assunto aqui. Não diz respeito à CPI.

Ao retomar a fala, Sâmia criticou a postura do adversário e disse que as respostas não deveriam ser apresentadas para ela, mas à PF.

Em nota, mais tarde, Zucco negou qualquer ato ilícito e disse que está “à disposição da Justiça para esclarecimentos”. “Documentos e vídeos de domínio público da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul demonstram que não há qualquer indício de envolvimento meu com quaisquer atos atentatórios à democracia.”

Soco na mesa

Menos de uma hora após o início da sessão, um entrevero teve até socos na mesa e declarações em tom elevado. O deputado Valmir Assunção (PT-BA), que já foi assentado do MST, reagiu quando o oposicionista Éder Mauro (PL-PA) disse que o movimento costuma cometer crimes.

Acusação de tortura

Na sequência, outro embate envolveu Éder Mauro.

Sâmia e a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ) reclamaram que foram interrompidas pelo parlamentar bolsonarista, que chegou a chamar o MST de “movimento de marginais”.

Sâmia e a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ) reclamaram que foram interrompidas pelo parlamentar bolsonarista, que chegou a chamar o MST de “movimento de marginais”.

— Quem está acusando é quem apoia tortura —disse Sâmia, sendo acompanhada pela colega de partido.

— Eu não admito ser interrompida por torturador — completou Talíria.

Éder Mauro chegou a ser investigado de envolvimento, por omissão, em um caso de tortura praticado por policiais que estavam subordinados a ele no período em que era delegado, mas a Segunda Turma do STF julgou improcedente a acusação e absolveu o deputado.

Terrorismo e suco de uva

Integrante do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, o deputado

Capitão Alden (BA) também provocou reações enérgicas dos adversários ao acusar o movimento alvo da CPI de praticar terrorismo, e não luta social.

— Vamos trazer outros elementos que vão corroborar o fato de que o MST é um movimento terrorista — acusou o parlamentar.

A declaração irritou os integrantes da tropa de choque de Lula. Parte deles tentou interromper o deputado da direita. Colega de bancada de Alden, Caroline de Toni (SC) pediu silêncio, e a petista Camila Jara (MS) ironizou e ofereceu suco de uva produzido em assentamentos para que a colega pudesse se “acalmar”.

Ao Conselho de Ética

Ex-ministro de Bolsonaro e integrante da bancada ruralista, o relator da CPI, Ricardo Salles, também entrou na mira. Talíria lembrou que ele deixou o governo após ser alvo de uma investigação da PF que apurava o contrabando de madeira. Ele nega as suspeitas.

— Cresceu em mais de 70% a violência no campo (no governo Bolsonaro). Tem a ver com grilagem, madeireiros e garimpo ilegal. Aliás, com crimes em que há envolvimento do próprio relator, hoje investigado pela Polícia Federal —disse Talíria.

Em seguida, o deputado Kim Kataguiri (União-SP) interrompeu a parlamentar e disse que o regimento da Casa veda que deputados se refiram a colegas de forma “injuriosa”. Talíria retrucou ponderando que estava falando de “fatos”, e Salles afirmou que levará o caso adiante.

— Vou pedir que seja extraída a fala da deputada, para representação no Conselho de Ética —afirmou o relator da comissão.

Descrição da CPI vira queixa

Salles já havia sido alvo logo após a leitura do plano de trabalho, primeira etapa da reunião de ontem. Sâmia criticou a descrição oficial que acompanha o nome do colegiado e trata do escopo da CPI.

— Comissão parlamentar de inquérito destinada a investigar invasões de terra, crimes de patrimônio público. Distorceu completamente, sem nenhum pudor, o intuito real da CPI — reclamou Sâmia, apoiada por Gleisi Hoffmann (PT), que fez coro às críticas da aliada.

A deputada também se queixou da lista de possíveis convocações da comissão. Como há uma minoria governista, a tendência é que os interesses da oposição levem vantagem. Está na pauta de hoje do colegiado uma lista de 15 requerimentos apresentados. As votações mais relevantes tratam das convocações dos ministros Carlos Fávaro (Agricultura) e Paulo Teixeira (Desenvolvimento Agrário). Também há a previsão de chamar o secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo, Guilherme Derrite.