Título: O nome aos gatos
Autor: Paulo de Tarso Lyra
Fonte: Jornal do Brasil, 06/05/2005, Brasil, p. A2

Não nos devia surpreender a cassação do deputado André Luiz, tantas eram as evidências de seu comportamento de corrupto e achacador. O que nos deve assustar é o fato de que tantos o tenham absolvido e que outros tantos se tenham abstido da votação que o expeliu da Câmara dos Deputados. Assusta-nos, da mesma forma, o culto evangélico que antecedeu ao julgamento do plenário, cujo texto, publicado pela imprensa, é de defesa aberta do parlamentar. Cristo expulsou das portas do templo, a chicotadas, os que ali vendiam coisas: seus mais recentes evangelistas perdoam aos que vendem, nas portas do Parlamento, a dignidade do instituto da representação política. Há dias, neste mesmo espaço, comentávamos a crescente tolerância com a corrupção no Brasil e no mundo ocidental. As sociedades se perdem quando são totalitárias e se perdem quando são condescendentes em outras questões éticas. Há um bom ensaio de Marcuse sobre os limites da tolerância. Embora ele se refira ao nazismo, o raciocínio serve para qualquer forma de violação à ordem democrática. Hitler não deixava dúvida quanto ao que projetava e podia ter sido barrado antes que se consumasse a grande tragédia. Mas, humilhados pela derrota de 1918, a maioria dos alemães o seguiu, sob a complacência das elites e dos intelectuais. Essa tolerância permitiu que ele manipulasse a opinião pública e as instituições políticas, e, com os recursos do Dr. Goebbels, transformasse em virtudes patrióticas a violência e o crime.

A corrupção começa a ser vista como atividade normal em certos meios políticos. E os compradores de votos parlamentares não são só os bicheiros e traficantes de drogas e alguns empresários que buscam fazer bons negócios com o Estado. O Poder Executivo é velho comprador de votos parlamentares. Ao comprá-los, várias vezes nestas duas últimas décadas, o governo estimula a corrupção, conspurca e humilha o Parlamento. Pouco importa a moeda usada: obras públicas nas bases eleitorais do beneficiário, empregos para os seus indicados ou - de acordo com sólidas denúncias - dinheiro vivo. Isso ocorreu em momentos decisivos para a vida política, nas emendas parlamentares que instituíram a reeleição, mudaram o conceito de empresa nacional, quebraram o monopólio estatal do petróleo e permitiram a desestatização e a desnacionalização de importantes setores da economia.

Há alguns anos, durante o regime militar, era tolerada e estimulada a presença de notórios contraventores na vida social do Rio de Janeiro e em outras grandes cidades. Bicheiros buscavam a fama e eram fotografados, lampeiros, ao lado de autoridades e personalidades da elite. O deboche era tal que os "porta-vozes da Contravenção" davam entrevistas aos jornais, opinando sobre tudo, e os chefes se orgulhavam de contribuir para obras de benemerência e iniciativas culturais. Coube a uma jovem e brava juíza, Denise Frossard, ao condená-los, dizer que, com a tolerância da sociedade, eles violavam a lei e desafiavam o Estado. Essa tolerância com os bicheiros abriu caminho para que o crime se organizasse também nas favelas. O convívio alegre entre as autoridades e os contraventores agravou a promiscuidade entre bandidos e policiais, levando o Rio de Janeiro a essa situação dramática, na qual o cidadão não sabe hoje a quem mais temer; se ao criminoso que seqüestra, assalta e mata, se aos policiais, pagos com o dinheiro público para defendê-lo.

A punição de parlamentares corruptos não deve limitar-se à cassação de seu mandato. É necessário que a Justiça comum dê continuidade ao processo. Por outro lado, é desejável o ajustamento da legislação penal, de maneira a que sejam punidos, com mais rigor do que hoje, os servidores dos três Poderes da República que cometam crimes contra o patrimônio público.

Cabe à Câmara dos Deputados continuar seu trabalho saneador, e identificar os cúmplices de André Luiz. Como sempre ocorre nesses casos, espera-se que o ex-parlamentar dê nome aos gatos.