Título: O fundo do poço
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Fonte: Jornal do Brasil, 06/05/2005, Opinião/ Editorial, p. A10

Enquanto a Câmara cassou o mandato do deputado fluminense André Luiz (sem partido), em gesto interpretado como um ato de sobrevivência da própria imagem, o parlamentar que mais deveria zelar pela credibilidade da Casa segue a adornar o já extenso repertório de ações e declarações burlescas. Com a sua compulsiva inclinação pela afronta típica dos insensatos, o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), tem contribuído para aprofundar a aversão do eleitor médio brasileiro aos políticos e, em especial, ao Poder Legislativo. Um dia antes da cassação de André Luiz, acusado de tentar extorquir R$ 4 milhões do contraventor Carlos Cachoeira, a Mesa Diretora da Câmara arquivara o pedido de investigação contra o presidente do PP, deputado Pedro Corrêa, colega de partido de Severino Cavalcanti. Atitudes como esta somam-se freqüentemente às sucessivas medidas corporativas tomadas na gestão de Cavalcanti. A reação da opinião pública se tem revelado cada vez mais eloqüente contra seus representantes. A resposta adequada se daria somente por meio de um gesto como o de quarta-feira - uma votação maciça em favor da cassação de um colega por quebra de decoro parlamentar. Foi o que ocorreu.

Embora louvável, no entanto, a cassação não deve aplacar o descontentamento dos cidadãos. Culpa de uma perversa história que conjuga ineficiência na produção legislativa com uma vasta horta de benefícios concedidos aos parlamentares. Esse desgaste está longe de ser uma generalização superficial. Basta lembrar um recente levantamento do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social, segundo o qual o eleitor fluminense considera importante a função parlamentar, mas acha que os políticos não estão à altura dos cargos que lhes são confiados pelo voto - fruto da baixa qualificação, da ineficiência ou das vantagens pessoais adquiridas no exercício do mandato.

Não são raras as avaliações que enxergam os parlamentares como legítimos representantes dos próprios interesses - um corporativismo que mina a desejável vocalização das preferências dos cidadãos. É de estarrecer, por exemplo, que na votação de quarta-feira um terço dos deputados de alguma maneira se revelou conivente com o acusado de chantagem. Afinal, foram 104 votos contrários à cassação, além de 33 abstenções. Alimenta-se, assim, o crescente afastamento da população no acompanhamento da atividade do Legislativo em todos os níveis.

Não bastassem tais evidências, não satisfeito com as queixas da opinião pública diante da defesa que faz de práticas nefastas como o nepotismo e o clientelismo, não incomodado com a reação do eleitor frente as suas tentativas de ampliar os privilégios dos colegas, Severino Cavalcanti indicou seu compadre, o pernambucano Maurício Albuquerque, para o Conselho Nacional do Ministério Público. Também envia, em público, recados sistemáticos ao Palácio do Planalto para que atenda aos pedidos de cargos e verbas. Um achincalhe à sensatez, um desrespeito ao eleitor e uma desonra à instituição que comanda.

Há quem veja, disfarçado sob a caricatura e o grotesco de Severino, o benefício da transparência. Argumenta-se que ele faz e diz em público o que a maioria dos políticos prefere fazer e dizer nos cochichos de corredor no Congresso. Equívoco. Não há mérito algum em vocalizar em praça pública desejos e práticas inconfessáveis. São coisas distintas, é fato. Mas ambas execráveis. Reafirme-se, então: nepotismo, fisiologismo, clientelismo, empreguismo e quaisquer outros ismos congêneres são práticas a serem extirpadas. Se estivesse à altura do cargo que ocupa, Severino dedicaria esforços a bani-las do cotidiano do país. Ao alimentar um vale-tudo ético e moral, o presidente da Câmara empurra a política brasileira para o fundo do poço. Que, imagina-se, já foi atingido. Até que novo despudor se revele.