Título: Sexta-feria, dia de ressurreição
Autor: Leonardo Boff
Fonte: Jornal do Brasil, 06/05/2005, Opinião, p. A11
Deixemos as questões da Igreja e ocupemo-nos do cotidiano. Os cristãos celebram a ressurreição no domingo de páscoa, uma só vez ao ano. No Brasil, curiosamente, a ressurreição acontece todas as sextas-feiras. É a hora em que peões e operários terminam o trabalho estafante da semana. Aí se reúnem alegremente em grupos nos botequins e nos restaurantes populares para tomar a sua cerveja. Tudo é sorriso e amabilidade. A faladeira é grande. Nas mesas as garrafas de cerveja se sucedem. E come-se coisa barata mas gostosa: asas de frango com farofa e molho à campanha; churrasquinho de carne com fritas. E no fim de tudo meio copo de cachaça. E a saideira demora de acontecer. São várias porque sempre há alguém que paga mais uma rodada.
Os rostos se transfiguram. Percebe-se pelos corpos gastos, pelas caras cansadas e pelas roupas surradas que são pessoas exploradas. Foram submetidas durante toda uma semana à dura faina da humilhante produção capitalista. Esta não valoriza a criatividade do trabalhador. O capitalismo não ama a pessoa, apenas sua força de trabalho, seus músculos, sua cabeça, sua habilidade e especialmente sua produtividade.
Mas a sexta-feira é o dia em que a vida dá o troco. Acontece a ressurreição. Os seres humanos recuperam sua humanidade perdida, redimidos das cadeias que os prendem a quatro paredes, às máquinas melancólicas, aos escritórios higienizados com seus computadores frios.
Conversa-se de futebol. Cada um é mestre nessa arte. É a um tempo treinador e critico dos treinadores e dos craques. Depois passa-se à mulheres. Contam-se casos reais e inventados, piadas, vazão da libido reprimida. E as ''popozudas'' e as ''gostosas'' merecem muitos comentários. Às vezes, fala-se de política, para injuriar os governos, para esculhambar o Lula, embora depois acabem votando nele.
Mas o bom mesmo é a conversa fiada, a conversa mole, a gratuidade de falar, rir, tomar cerveja, beliscar comidas. Alguns mais entusiasmados e já sob o efeito da cachaça falam mais alto. Outros até abraçam o amigo ao lado como se fosse sua namorada. Só falta beijá-lo.
Eu reparo as figuras: aquele negro com um corte no rosto revela uma bondade irradiante e doce; sorri com uma doçura que é já primícias da verdadeira redenção no paraíso do proletariado; esse queria tê-lo como irmão. Aquela outra mulher gorda, bebe, belisca asas de frango, fala alto; seu olhar é penetrante; reparte o vinho barato - Sangue de Boi - com a companheira em frente; esta seria uma amiga que gostaria de ter. Tudo aqui é leveza, alegria, própria da ressurreição. Diz-se que no Ocidente o sorriso só entrou após a fé na ressurreição, quer dizer, com a vitória da vida.
Eu mesmo num canto peço minha porção de asas de frango com farofa, tomo minha cerveja e fico observando. E me enlevo. A opressão não consegue matar a vitalidade da vida.
Quando vou pagar, depois de repetir o prato, vejo que é uma ninharia. Pago quase o dobro em gorjeta. E saio emocionado em direção ao carro, chorando de alegria por assistir a ressurreição acontecendo, testemunhando a vida invencível e indestrutível dos pobres e dos oprimidos, o nosso povo, os preferidos de Deus. A ressurreição acontece de novo, cada sexta-feira, na esperança de que um dia vire um eterno domingo de páscoa. Essa fé vale pra mim mais que todas as discussões sobre o novo Papa.