Título: O esperto instinto de sobrevivência
Autor: Villas-Bôas Corrêa
Fonte: Jornal do Brasil, 06/05/2005, Opinião, p. A11

A cassação do mandato do deputado André Luiz Lopes da Silva - livre-atirador sem vínculo partidário, por 311 votos, com 104 contra dos solidários com o colega de rico prontuário; 33 abstenções e três votos em branco dos viciados no exercício de equilíbrio no murismo - contraria a tradição parlamentar sem surpreender aos que acompanham a sinuosa trajetória do Congresso. Coube ao deputado Jutahy Junior (PSDB-BA) o mérito de cunhar a frase perfeita que ilumina a dolorosa degola do colega de atuação discreta no plenário e intensa atividade em outras áreas: ''Ou era ele ou éramos nós''.

A orgia das mordomias, das vantagens; o culto do corporativismo não foram afetados pela exceção. Ao contrário, assinala o drible hábil e oportuno que sacrifica o dedo empestado para salvar o principal, que continua intocado.

É que o André Luiz passou da conta. Passou mesmo? Bem, não foi apenas a fita gravada de conversas de alto nível do cassado com emissários de Carlinhos Cachoeira, negociando as propinas a serem distribuídas entre deputados estaduais para a mágica do desaparecimento do nome do empresário do relatório da CPI da Loterj, na Assembléia Legislativa do Estado do Rio que garantiu os 311 votos da decapitação.

A mistura fatal juntou a reação da opinião pública, a vaia que doeu nos sensíveis ouvidos do deputado Severino Cavalcanti, presidente da Câmara e guru do baixo clero e o fantasma da reeleição daqui a um ano e oito meses, quando cada um dos 513 deputados apostará todas as fichas para garantir por mais quatro anos um dos melhores empregos do mundo.

O minguado grupo dos que vêem renovando as advertências sobre os riscos para a estabilidade democrática com a crescente desmoralização do Legislativo comemorou a vitória sem exagero. Com os pés no palmo seco do terreno lamacento, o deputado Chico Alencar (PT-RJ) - que foi ameaçado em plenário por César Coite, assistente do advogado de André Luiz, Michel Saliba - cercou-se de cuidados na declaração caprichada: ''É uma dor que liberta. É triste porque ele chegou aqui apoiado pelo voto de 91 mil eleitores da zona Oeste do Rio, a grande maioria gente humilde''.

Não convém alimentar ilusões sobre as conseqüências da exceção, uma conta no rosário de desatinos que empurram o Congresso para a rampa da rejeição da sociedade, confirmada por todas as pesquisas. De logo, não se deve esquecer que, dias antes, o deputado pernambucano Pedro Corrêa, presidente do PP, o partido do presidente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti, escapou com escoriações da perda do mandato, com a solidariedade da ampla maioria do plenário, apesar da gravidade da denúncia, amparada em gravações telefônicas, de suas tratativas com o empresário Ari Natalino, que opera no ramo dos combustíveis, com envolvimento criminoso com a máfia especializada na adulteração do produto.

Repetir a dose com o perdão ao ex-deputado André Luiz seria uma provocação suicida. Depois, a vítima não contava com padrinhos prestigiosos como o presidente do PP. A pajelança da Frente Parlamentar Evangélica, organizada e firme com a bancada de 61 deputados e três senadores, pelo visto não chegou ao céu nem obteve a graça da ajuda divina.

A Câmara safou-se de despencar no precipício. Continua na zona de risco. A crise do Congresso não é apenas política nem se resolve com medidas, que são importantes e necessárias, como a reforma partidária, o fim do troca-troca de legendas e da vinculação vertical, do interesse de alguns.

A crise do Legislativo é ética, é moral, de falta de decoro coletivo que corrói a sua autoridade e o respeito popular. Necessita de inadiáveis reformas em profundidade, com a poda da vergonha das verbas de gabinete, nichos de nepotismo; o fim da verba indenizatória, disfarce de salário indireto; da madraçaria da semana de dois a três dias úteis, da penca de espertezas dos privilégios.

Não se trata de doença grave e crônica com paliativos. O caso é de operação urgente, urgentíssima.