Título: O processo de abertura na Argentina
Autor: Raúl Alfonsín
Fonte: Jornal do Brasil, 09/05/2005, Internacional / Além do Fato, p. A8
Nós os argentinos passamos da ditadura à liberdade em uma marco de dupla transformação: do relativo bem-estar à miséria, e de uma aceitável interdependência à dependência. Tudo isso em um clima internacional configurado pelo que se convencionou chamar de a criação de uma nova ordem internacional, e pela globalização não solidária. A convivência exigia a tomada de atitudes de cooperação diante dos conflitos, também presentes na sociedade como expressão das divergências que se não eram sintetizadas, amortecidas, adequadas ou toleradas, apenas poderiam ser superadas por meio da submissão ou eliminação dos oponentes.
Sabíamos que o pleno exercício dos direitos dos cidadãos, a liberdade individual e a solidariedade social iriam constituir a base sobre a qual começariam a se erguer nossas sociedades modernas. Seus novos valores ¿ a tolerância, a racionalidade, o respeito mútuo e a busca de soluções pacíficas para os conflitos ¿ possibilitariam uma passagem sem traumas para a sociedade verdadeiramente democrática.
Nessa nova sociedade, cada pessoa deveria sentir que possuía poder de opinião, de decisão, e construção. Deveria saber que estava em condições de exercer isso eficazmente.
Para tanto era preciso mudar a velha política de portas fechadas pela nova política em contato direto com as reivindicações e propostas do povo. A política deveria quebrar a barreira da frieza, da distância e da desconfiança, com as quais, entretanto, muitos ainda a vêem. A substituição da violência e da intolerância pelo debate e o pluralismo, a exclusão da luta selvagem como meio para dirimir as naturais contendas entre diferentes idéias e propostas, e sua substituição pelo debate aberto e o conseqüente respeito à decisão da maioria e aos direitos das minorias, constituíam o compromisso primordial para a mobilização que levaria aos objetivos comuns.
Devemos recordar que a idéia básica da Justiça é a ausência de desigualdades arbitrárias. Era preciso buscar os caminhos que levassem ao consenso necessário para concretizar uma real independência, uma liberdade autêntica e uma procura tenaz por critérios de igualdade.
Precisávamos definir ações conjuntas, adequadas a quem está disposto a lutar contra o neoliberalismo, o confronto como sistema, o elitismo, a corrupção, a hegemonia e a exclusão. Só assim encontraríamos os caminhos da justiça e da igualdade.
O esforço para criar bases estáveis para a convivência democrática, deveria passar necessariamente por uma reforma cultural que removeria o acúmulo de deformações assentadas na mentalidade coletiva, como herança de um passado marcado pela desagregação.
O autoritarismo, a intolerância, a violência, o maniqueísmo, a divisão da sociedade, a concepção da ordem como imposição, e do conflito como perturbação anormal da ordem, a indisponibilidade para o diálogo, a negociação, o acordo ou o compromisso, são maneiras de ser e de pensar que criaram raízes no decurso de gerações.
Era preciso evitar os compartimentos estanques que consideravam a si mesmos, em maior ou menor medida, encarnações do conjunto nacional, com a exclusão dos demais. Assim não se constrói uma democracia, nem mesmo uma pátria comum, mas apenas uma conflitante justaposição de um país e um antipaís, uma nação e uma antinação. Como unidade política e territorial, a nação se assentaria no precário domínio de um grupo que prevaleceria sobre os demais, e não na desejada articulação de todos em um sistema de convivência.
Nada se construirá com partidos, organizações sindicais, associações empresariais, forças armadas compartimentadas, unidades culturalmente dispersas que apenas ocasionalmente se associam em falanges maiores, também exclusivas entre si, mas nunca em esquemas de convivência global.
Tampouco era possível construir a democracia considerando-se ordem como imposição, e conflito como desordem. Em uma sociedade culturalmente desarticulada, que não reconhece a existência de espaços normativos comuns entre seus grupos componentes, a ordem apenas é concebível como produto de uma ação coerciva ¿ portanto basicamente repressiva ¿ do grupo dominante.
Mudar as mentalidades arraigadas de nossas sociedades, eliminar seus oponentes autoritários, intolerantes, egoístas, predispostos à compartimentagem setorial, e intolerantes com relação ao diálogo e ao comprometimento, constitui uma empresa cujo ponto de chegada não poderia ser outro que a construção de uma nova vontade coletiva.
No momento em que essa empreitada se firmasse como criação e desenvolvimento de uma sociedade solidária contra os fatores de desagregação que ainda perduravam, a tarefa iria adquirir uma insuperável e decidida dimensão ética.
O egoísmo pode debilitar a solidariedade social, gerando situações de desamparo e medo que deixam os povos particularmente sujeitos às pseudo-soluções messiânicas ¿ populistas e outras ¿ nas quais o indivíduo isolado busca um meio de ter sua identidade e com o que se proteger.
A tensão entre liberdade e igualdade está no centro das discussões e das concepções políticas contemporâneas. Vejamos a tradição liberal, o pensamento social da Igreja, e os movimentos trabalhistas e sociais. Para começar a superar essa tensão é preciso enriquecer e, portanto, redefinir a noção tradicional do que é um cidadão, ou a cidadania, reconhecendo que abarca, além da igualdade formal jurídico-política, muitos outros aspectos, conectados com o fato dos homens existirem e terem poder, isto é, com a repartição natural das capacidades e a divisão social de recursos.
Esse reconhecimento amplia o significado dos direitos humanos que não só são violados pelas ativas interferências contra a vida, a liberdade e os bens pessoais, mas também por omissão, quando não são oferecidas oportunidades e recursos necessários para que se alcance uma vida digna.
A modernização era necessária, mas não se tratava de modernizar ante um critério exclusivo de eficiência técnica ¿ embora considerando a dimensão tecnológica da modernidade como fator fundamental; tratava-se de pôr em andamento um processo de modernização que progressivamente incrementasse o bem-estar geral, de modo que a sociedade em seu todo pudesse se beneficiar com seus frutos.
Uma modernização pensada e praticada pura e simplesmente como uma forma de reduzir custos, de preservar a competitividade e de elevar os lucros é uma modernização míope em sua concepção e, além disso, socialmente injusta, pois deixa de lado as conseqüências que as mudanças por ela introduzidas acarretarão para o bem-estar dos que trabalham e da sociedade como um todo.
Frente a uma modernização baseada no esforço dos poderes privados, e outra baseada no fortalecimento do Estado, a modernização na democracia e na solidariedade pressupõe o fortalecimento dos poderes da sociedade, constituídos de forma autônoma.
Transformar uma sociedade de forma a torná-la eficiente significa sobretudo, e antes de mais nada, melhorar a qualidade de vida das pessoas. Por outro lado, existe uma correlação inversamente proporcional entre centralização e participação.
Uma gestão estatal muito centralizada implica em confiar a administração da coisa pública a um núcleo burocratizado da população, que pode agir em maior grau pelos seus próprios interesses corporativos do que pelo interesse geral. Descentralizar o funcionamento do Estado significa abri-lo a formas de participação mais consistentes, dependendo de seu grau de descentralização.
Já passou o tempo em que se acreditava que a felicidade do gênero humano estava na volta de um episódio absoluto, violento, definitivo, o qual, da noite para o dia, inauguraria uma vida nova. A revolução não é isto nem jamais foi. Revolução é um rótulo que os historiadores põe no final de séculos a um processo de transformação prolongado e complexo.
Entretanto, também acabou a época das pequenas reformas, da ilusão de que, com correções mínimas, seria possível mudar o rumo de uma sociedade. Não falemos de reforma nem de revolução, o que comportaria uma discussão anacrônica. Situemo-nos, ao contrário, no caminho acertado da transformação racional e eficaz.
De outro ponto de vista, sempre pensamos que não poderia haver uma democracia sólida e duradoura para cada sociedade em particular se a organização política e econômica internacional não fosse regida pelos mesmos princípios e valores que a inspiram. A coexistência de povos ricos e povos pobres, de povos livremente organizados e de povos submetidos ao autoritarismo, é incompatível com o funcionamento de uma sociedade internacional pacífica e harmônica, uma sociedade que os mecanismos de inter-relação econômica e os modernos sistemas de comunicação já transformaram em realidade inapelável.
A sociedade internacional, que compreende pela primeira vez na história a humanidade como um todo, inter-relacionada e interdependente de uma maneira tão global e irreversível, deve ser também uma sociedade democrática.
Se a defesa dos direitos humanos implica não apenas na oposição às interferências ativas em detrimento da vida, da liberdade e da integridade dos indivíduos, bem como da disponibilidade de recursos e oportunidades para que eles possam explorar ao máximo suas capacidades, as relações entre os povos não podem nem devem se basear em uma distribuição desigual de recursos e oportunidades para o seu desenvolvimento.
A atual ordem econômica internacional, que trava ou limita o crescimento de tantos povos da Terra, é uma ordem que pouco se compadece dos direitos humanos e dos ideais da grande revolução democrática da qual não pode ser excluído nenhum habitante da Terra.
No momento da instauração da democracia, era fundamental para a Argentina defender o respeito absoluto dos princípios do direito internacional, originados do antigo direito das gentes e, ao mesmo tempo, plasmados na Carta das Nações Unidas, com o propósito de ¿reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos de homens e mulheres e das nações grandes e pequenas¿. Princípios que afirmam a igualdade soberana de todos os países e a necessidade de abster-se de recorrer à ameaça ou ao emprego da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado. Ou como afirma a carta de Bogotá, lutar para que a ordem internacional seja ¿essencialmente constituída pelo respeito à personalidade, soberania e independência dos Estados e pelo fiel cumprimento das obrigações emanadas dos Tratados e de outras fontes do direito internacional¿.
Para orientar nossa política, partimos do pressuposto de que as nações têm dignidade e prestígio e que esta afirmação nada tem a ver com a teoria organicista ou antropomórfica. As próprias empresas comerciais devem ter um critério de dignidade. Qualquer obra humana é o resultado de um conjunto de valores compartilhado por cada ser humano que a realiza.
As mudanças democráticas realizadas geraram um renovado prestígio internacional da nação. Não há nenhuma dúvida de que o novo modo e a qualidade da vida pública argentina tiveram muito a ver com as mudanças da opinião mundial a respeito da consideração das nossas propostas, a autoridade da nossa voz e a legitimidade das nossas reclamações.
Sempre foi assim. Quando nas guerras de Independência outros povos saudaram nossas bandeiras e nossos exércitos, a liberdade que proclamávamos para eles já imperava entre nós.
Tenho afirmado que os que acreditaram, em anos recentes, que as relações exteriores da nação poderiam ser tratadas apenas com um critério publicitário menosprezavam a opinião pública mundial com o mesmo menosprezo do qual foi vítima, internamente, a opinião do povo argentino.
Como não tínhamos dois tipos de moral, não podíamos ter duas políticas, e este foi o princípio fundamental que orientou nossa política externa.
Pertencemos com uma identidade própria ao universo social, político e cultural do Ocidente, e este fato não é mera decorrência dos acasos da geografia ou da inércia de uma situação herdada e aceita passivamente.
O Ocidente não é uma zona geográfica, mas uma configuração histórica, que significa, antes de mais nada, um tipo particular de civilização, um modo específico de pensar e organizar a política, a sociedade e o conhecimento.
No Ocidente nasceu uma sociedade capaz de julgar e acusar a si mesma. Valores como legitimidade da mudança, autonomia dos homens em relação a seus atos, a não aceitação passiva das injustiças, solaparam decisivamente a crença no caráter imutável das estruturas sociais e geraram a possibilidade do progresso histórico, visto não apenas como domínio da natureza pelo homem, mas como extensão do gozo deste progresso a todos os setores da população.
Evidentemente, o Ocidente nem sempre obedeceu a estas linhas ideais. Desenvolveu formas desumanas de exploração econômica colonial e foi capaz de gerar crueldades levadas a extremos horríveis. Mas soube sempre sobrepor-se a estes desvios.
Queríamos um futuro próprio, livre, orgulhoso, onde cada nação e cada homem pudesse decidir seu destino. Desse modo, diante do pessimismo dos cínicos, queríamos trabalhar para a esperança, porque não aceitávamos que o preço da paz fosse a subordinação dos mais fracos.
Entretanto, não se concretizam objetivos imaginando-os, simplesmente, e tampouco são alcançados com o grito do protesto. É necessário um trabalho permanente, sistemático e sério. Sobretudo, sério.
A ênfase principal terá de ser colocada na integração latino-americana, que terá de deixar de ser um simples enunciado que nunca terminou de se cumprir.
Neste caminho, demos passos concretos para efetivá-la. O Consenso de Cartagena sobre o tema da dívida externa criou um campo de trabalho solidário, e o Grupo de Contadora e de Apoio foi outro passo na mesma direção. Avançamos significativamente com a constituição do Grupo dos Oito.
O acordo com o Brasil significou o salto qualitativo mais importante jamais dado na Argentina para a concretização deste objetivo.