Título: Brasil revê sua história na terra
Autor: Marcelo Ambrosio
Fonte: Jornal do Brasil, 08/05/2005, Internacional, p. A11

O gasoduto Bolívia-Brasil é uma obra de números absolutos: iniciada em 1997, tem 3.150 km de extensão, 557 km dos quais em território boliviano, atravessa cinco estados (MS, SP, PR, SC e RS) e 135 municípios brasileiros, cruza dezenas de córregos e rios como o Paraná, a um custo total de US$ 2,1 bilhões. Apesar disso, nada se iguala ao que o projeto proporcionou, em termos científicos, para o conhecimento de como viviam os habitantes originais ao longo do trajeto, um corte bem no meio do continente sul-americano, em uma das mais extensas pesquisas arqueológicas já realizadas. Entre as primeiras conclusões anunciadas está a confirmação de que a cultura inca se estendeu até as margens do Rio Paraguai, no lado boliviano, e que a região de Itapeva (SP) era uma fronteira entre grupos indígenas importantes.

O levantamento arqueológico foi realizado por equipes de universidades federais e contou com orçamento em torno de R$ 30 milhões - que incluíam outras ações sociais e ambientais. Durante cinco anos, os grupos percorreram a linha do gasoduto à frente da obra, pesquisando indícios de sítios e, como em alguns casos, recomendando o desvio de rota. Quando não era possível, o local era esquadrinhado. Graças a isso, a quantidade de material, apenas no Mato Grosso do Sul, demorará anos para ser totalmente analisada.

- Detalhamos 170 sítios só no estado, que tem grande variedade de ambientes, desde florestas ao cerrado. Para cada um havia uma cultura, já que determinavam que tipo de tecnologia as populações indígenas e pré-históricas usavam para um equilíbrio funcional com os recursos naturais - explica o professor e presidente da Sociedade Brasileira de Arqueologia, Gilson Rodolfo Martins, coordenador da pesquisa no MS. - Conseguimos datações via termoluminescência de tribos até 3.500 anos. Há peças de até 5 a 6 mil anos, mas estas pertenciam a grupos de caçadores-coletores - explica.

A pesquisa permitiu ainda traçar a etnohistória até o Descobrimento. De acordo com o professor, até os séculos 16 e 17 viveram na região índios guaranis, mais tarde dizimados pelos bandeirantes. O vazio demográfico decorrente acabou preenchido no século 18 pelos grupos chaquenhos (do Chaco, o pantanal boliviano), como guaicurus e guanás, hoje representados por terenas e kadiweus. Estes, conforme se demonstrou agora, seriam remanescentes do contato com a cultura inca, uma tese antiga mas ainda sem comprovação científica. Esta veio através da equipe do Instituto Nacional de Arqueologia de La Paz, que seguia a linha do lado boliviano e relacionou padrões gráficos encontrados na cerâmica.

- O Rio Paraguai era um grande eixo de relações interétnicas entre a culturas brasileiras, chaquenhas e andinas - explica Martins.

A diferenciação também foi possível pelo próprio material, lotes com até 4.000 peças, de pequenos acampamentos a aldeias onde viveram centenas de pessoas. Lascas de pedra usadas como flechas nos primeiros indicavam grupos de caçadores e a argila dos segundos o domínio de técnica de agricultura e necessidade de recipientes para armazenamento.

- Chegamos a sítios com 1.135 anos acima de 40 cm do solo, de tribos ceramistas que seriam 85% do total. Quase todas as etnias faziam cerâmica, cada qual com morfologia, enfeites e composição particulares. Os fragmentos trazem técnicas e materiais variados, como minerais, areia, carvão e o cariapé, um tipo de concha triturado - relata Martins.